Este é o último texto composto à volta da conversa que tive com Afonso Cruz acerca do seu percurso de leitor e dos livros da sua vida. Os posts anteriores estão disponíveis aqui:
Afonso Cruz / Parte 1: Nasce o leitor
Afonso Cruz /Parte 2: O leitor adolescente
Afonso Cruz / Parte 3: O leitor adulto
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Em fevereiro passado, Afonso tinha regressado havia pouco tempo da Feira do Livro de Taiwan. Contou-me que por ser muito viciado em livros, não passa mais de dez horas sem comprar um. Por isso, daquela passagem pela Ásia trouxe consigo cinco ou seis títulos adquiridos na única livraria que encontrou com edições inglesas de algum interesse. “A Brief History of the Philosophy of Time”, de Adrian Bardon, fazia parte do lote e era o livro que Afonso estava a ler quando conversei com ele.
“Para mim é muito importante ler livros de não ficção, neste caso de filosofia, porque me dão conteúdo, material de reflexão”, explicou. “É um pouco como a poesia, que me dá um lado mais lírico e estético muito importante quando estou a escrever, é uma influência grande na maneira como abordo o texto. Mas antes, estes livros de divulgação científica, de filosofia dão-me material de reflexão que gera conteúdo muito importante para mim e para os meus livros.”
Acerca do livro de Adrian Barton em concreto, Afonso acrescentou: “O tempo é uma coisa que me fascina imenso. Aliás, acho que é um dos grandes temas, porque também é um aspecto muito difícil de definir na nossa vida. Quando pergunto às pessoas o que é o tempo, é-lhes difícil explicar do que estamos a falar. As próprias perspectivas sobre o tempo são muito diversas, dispares, contraditórias. E isso é fascinante porque o tempo é o nosso tecido de realidade, o que nós apreendemos é graças a essa percepção de tempo e de espaço e as duas estão intrinsecamente ligadas.”
Feita esta viagem pelos livros que fizeram e continuam a fazer de Afonso Cruz a pessoa, o leitor e o escritor que conhecemos, quis saber como é que todo esse manancial — aprendizagens, experiências, conhecimentos e sensações adquiridas através das obras dos outros — desemboca no seu trabalho literário. A resposta remeteu-me para conceitos muito caros a Afonso Cruz, aqueles que pautaram toda a nossa conversa: a relatividade, a contradição e a perspectiva.
“Eu admiro a questão da perspectiva porque acho que é isso que nos dá imaginação, criatividade. Também nos dá mais opiniões e sustenta melhor a própria realidade, pela contradição. Ou seja, um objecto não é isto que eu estou a ver; é também exactamente o oposto, aquilo que outra pessoa está a ver. Mas para eu ver aquilo, tenho de me deslocar e nós podemos fazer isso fisicamente com uma viagem. Na verdade é reencontrar uma nova perspectiva, olhar para o nosso próprio país de longe, encontrar outro país, outras pessoas, outro tipo de pensamento, novos ângulos. Por outro lado, é perceber que não existe uma verdade única. Existe um conjunto de perspectivas que, todas juntas, darão uma espécie de verdade. E só uma espécie, porque existirão provavelmente coisas que são inconcebíveis e que nós não apreendemos.”
De acordo com Afonso, a sua literatura resulta do exercício constante de observação sob outras perspectivas: “Tenho personagens ou histórias que são feitas das contradições, das perspectivas, dessas deslocações. Há uma transumância, uma espécie de nomadismo. O próprio exercício de escrita é um exercício de empatia: eu coloco-me no lugar das minhas personagens, estou a tentar perceber se é uma pessoa muito diferente daquilo que eu acho que sou, tenho de imaginar se aquilo faz sentido, se me comportaria daquela maneira se estivesse naquele lugar. Essa compreensão apazigua-nos, traz-nos alguma pacificação. Se eu compreender a atitude do outro, mais facilmente eu consigo lidar com o outro do que com uma rejeição pura e simples. Normalmente o outro tem a ver connosco, porque nós somos seres humanos e nada do que é humano nos é alheio.”
E remata: “Na literatura há este exercício de nos convertermos em várias personagens, tentarmos criar alguma solidez nessas personagens e perceber os seus comportamentos. Nesse sentido é também uma maneira de compreender o mundo de várias perspectivas, de várias maneiras diferentes. Na verdade, a literatura, a arte e a as viagens convergem um pouco nessa ideia da contradição. Isso tem feito parte da minha vida e da minha mundividência, que pode ser muito pequenina, mas é a minha e é aquela que eu partilho, que sei partilhar e que posso partilhar.”