Há noites em que sais, manténs conversas da treta com desconhecidos e só levas para casa uma ressaca. E há noites em que sais, continuas a não escapar a uma ressaca, mas herdas bons amigos. Foi o que se passou comigo numa noite de sexta-feira, em Outubro de 2009.
Tudo aconteceu no restaurante Galerias de Paris. Saí do trabalho ao fim do dia e fui lá ter para um café com outras duas pessoas. A conversa prolongou-se até sentirmos fome. Ficámos para jantar. Outros portuenses e muitos turistas se juntaram a nós. O restaurante encheu-se de gente, a música alta instalou-se, os jarros de vinho da casa continuaram a aterrar na nossa mesa (a única que se mantinha posta quando o espaço já se tinha transformado em bar-discoteca) e quando demos por isso, um de nós fazia de cão, ajoelhado no soalho da sala, numa tentativa de interagir com um grupo de miúdas nórdicas. Neste momento, eu já tinha metido conversa com o Paulo, que aguentou estoicamente a certa loucura instalada no seio do meu grupo. Trocámos contactos e umas semanas mais tarde tivemos a oportunidade de nos reencontrarmos para um jantar tranquilo (e longo!) em que não nos calámos um minuto. Somos amigos até hoje.
Não vejo o Paulo tanto quanto eu gostaria e ele sabe disso. Vamos trocando mensagens breves, vamos sabendo da vida um do outro em traços gerais pelas redes sociais, mas podemos passar mais de um ano sem estarmos juntos. Cada um tem a sua vida — note-se que o Paulo é um arquitecto muito requisitado —, porém a distância e a azáfama não põem em causa a amizade e, acima de tudo, o respeito mútuo. Sempre que nos reencontramos parece que o tempo não passou. Retomar a conversa onde a deixámos é fácil porque temos muito em comum, os livros à cabeça. O Paulo segue o Acordo Fotográfico desde o primeiríssimo momento e foi uma das muitas pessoas que me ajudaram na compra da nova câmara fotográfica. É por isso que o trago hoje até vós.
O hábito de ler chegou relativamente tarde à sua vida. Embora a sua mãe seja leitora, o gosto pela leitura não lhe foi incutido quando era pequeno. Lembra-se que nas férias ia sempre espreitar a biblioteca da casa dos pais e explorava alguns livros sobre a história de Portugal, mas nunca os lia até ao fim. E foi assim até terminar os estudos superiores. “Às vezes até queria ler”, contou-me o Paulo, “e começava a fazê-lo, mas ao fim de quarenta páginas desistia. Tentava de tudo: livros técnicos, romances e livros de arquitectura, que ainda hoje não consigo ler porque me entediam… A verdade é que eu não estava para aí virado”.
Contudo, uma vez terminado o curso de Arquitectura, o Paulo recorda que se instalou em si uma certa ansiedade, uma urgência em adquirir novos conhecimentos. “Sabes porquê?”, perguntou-me. “Porque a informação deixou de me chegar. Enquanto andava na faculdade, a informação chegava-me todos os dias. Quando ela deixou de me chegar eu tive de ir procurá-la. E é muito melhor assim. Dantes atiravam-me de tudo. Agora posso focar-me na informação que me interessa”.
Conversámos sentados num banco do jardim da Cordoaria, no centro do Porto, e o Paulo tinha consigo dois livros. Ainda pensei que estivesse indeciso quanto à selecção do mais importante para si. Mas a escolha estava feita e recaiu sobre “Porquê nós? O Mistério da Nossa Existência”, do médico e escritor britânico James le Fanu. Explicou: “Escolhi-o não pelo livro em si — porque tenho outros livros que foram mais importantes ou que significaram mais em termos de conteúdo, de informação —, mas acima de tudo pelo que representa para mim. No fundo comprei-o por pura intuição. Cheguei à livraria sem saber o que queria ler e quando o vi pousado à entrada da Fnac gostei dele imediatamente”.
Interessado desde miúdo pela astronomia e pela cosmologia, o Paulo também sempre foi muito curioso no tocante às origens do ser humano. Foi por isso que o livro de James le Fanu se tornou tão apelativo. “Este é um livro bastante genérico, que fala da evolução da vida, dos animais e do Homem e de como recebemos inputs do exterior. Foi um livro muito importante porque através dele cheguei a outros autores. Assustava-me um bocado a ideia de começar a ler acerca de uma área nova e não saber por onde começar. Mas este livro deu-me uma série de referências e a partir daí fui fazendo o meu caminho de leitor. Comecei a seguir uma linha de raciocínio que se tornou parte integrante do meu processo criativo, inclusivamente na minha forma de ver a vida. E hoje em dia, naturalmente, procuro coisas de que começo a sentir falta. Por exemplo, agora estou a precisar de perceber um bocado o que é a Psicologia Evolutiva, que eu nem sabia que existia. E então fui informar-me e já tenho um ou outro autor de que gosto imenso. E vou por aí fora, vou sendo encaminhado de uns para os outros tendo por base o meu interesse”.
Uma das facetas que mais aprecio no processo intelectual do Paulo é a forma como ele integra na sua arquitectura as aprendizagens feitas com as leituras. Acho, inclusivamente, que é por isso que ele se distingue da quantidade de arquitectos que há no mercado e que é daí que advém boa parte do seu sucesso. O exemplo do Paulo vai ao encontro da minha crença: quem lê bons livros distingue-se, evidencia-se, salienta-se. A este propósito, o Paulo partilhou um episódio que o marcou:
“Quando andava na faculdade tive de repetir uma cadeira dois ou três anos — Teoria da Arquitectura, uma disciplina que ninguém fazia porque o professor, numa escala de zero a vinte, dava uns e dois. Eu até achava que o professor abordava as aulas de uma forma interessante. Por exemplo, perguntava-nos ‘Um ninho é arquitectura?’ e o debate começava aí. Só que aconteceu eu ter de repetir a disciplina no segundo ano, no terceiro ano, no quarto ano e as perguntas eram sempre as mesmas! Aquilo que eu pensava que eram perguntas que lhe saíam no momento, não passavam de algo padronizado e isso começou a incomodar-me muito. Ano após ano centenas de alunos recebiam os mesmos inputs o que só podia resultar numa linha de raciocínio padronizado… A arquitectura e o processo criativo resultam da junção de ideias. Quanto mais organizado for o raciocínio, quanto mais inteligente for a ideia, melhor é a arquitectura ou o processo de design. Não é algo que fazes de relance, num rasgo. É um processo de raciocínio, tem de ser inteligente, tem de ser bem desenhado, tal como um livro tem de ser bem escrito. Ao ir a outras áreas, o que eu faço é ‘injectar’ na minha cabeça ideias que a maior parte dos arquitectos não tem. A arquitectura é, tal como a literatura, um caminho para conhecer a realidade. É como se eu olhasse para a realidade pelo “tubo” da arquitectura, mas fosse ao “tubo” do lado e pedisse para dar uma espreitadela. E aí percebo que o Zé, que é médico, resolveu há muito um problema que eu tenho no meu trabalho e que se eu pegar na sua solução tenho uma mais valia brutal. Portanto, a minha preocupação é conseguir entrosar conhecimentos para ter um pensamento mais abrangente”.
Foi essa preocupação que o levou até António Damásio, o seu autor favorito. Daí ter levado também “O Erro de Descartes” quando nos encontrámos para conversar. “Identifico-me com o pensamento do Damásio e tenho um carinho especial por ele porque ajudou a fechar o pensamento no qual baseio a minha filosofia criativa. Eu sabia que era por ali, tinha uma intuição e quando o li percebi: ‘É isto!’. Lembro-me do momento em que estava a ler na cama e percebi que me tinha ‘caído’ uma boa ideia na cabeça. É excitante, o cérebro parece que começa a fervilhar. Foi quando percebi que a base da vida é a sobrevivência e que depois temos este processo de recompensa e de punição que lhe está associado, e que nos atrai para o que é positivo e afasta do que é negativo. A tal dualidade prazer-dor. Quando apreendi esse novo conceito, consegui ligar tudo aquilo de que andava à procura havia já algum tempo”.
Há, portanto, um antes e um depois dos livros claramente marcados na vida do Paulo. Ele mesmo admite: “Esse Paulo antigo — e o que eu te digo é rigorosamente verdade — é outra pessoa, não tem nada a ver com quem sou hoje. E é muito engraçado, porque tu consegues aperceber-te disso quando encontras pessoas que não vias há dez anos. Voltas a falar com elas e entendes o quanto mudaste ou evoluíste. O livro, realmente, é construção. Construção pessoal, acima de tudo. Os livros mudaram a minha vida e hão de continuar a mudar. Quando uma boa ideia te é ‘injectada’, é como um vírus. Então, tomei a decisão de passar o meu tempo, o máximo de tempo possível com gente interessante que tem boas ideias para me transmitir. Às vezes o melhor sítio para procurar é aqui, é nos livros. No fundo são como amigos, no sentido em que estou a ter uma conversa com eles, eles estão a passar-me informação e eu estou a tornar-me um bocadinho melhor pessoa. De forma muito pragmática, procuro nos livros a informação que me interessa e que vai transformar-me”.