Afonso Cruz / Parte 2: O leitor adolescente

Parte 2

Este é o segundo post composto à volta da conversa que tive com Afonso Cruz acerca do seu percurso de leitor e dos livros da sua vida. Quem não teve oportunidade de ler o primeiro texto, pode fazê-lo aqui: Afonso Cruz/Parte 1: Nasce o leitor.

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Para além de escritor, Afonso Cruz é ilustrador, músico e realizador de filmes de animação. Quando lhe perguntei por um livro que pudesse ter marcado particularmente, devia ter suspeitado que alguém com o seu perfil multifacetado jamais se limitaria a apontar-me apenas um título. Embarcámos, assim, numa viagem que percorreu várias fases da sua vida e vários estilos literários. Desembocámos na pintura.

Talvez porque um dia tenha tido pretensões de vir a ser banda-desenhista, Afonso começou por mencionar uma certa Banda Desenhada de qualidade que descobriu por volta dos dez anos e com a qual percebeu que não era necessário desenhar como Frankin ou Hergé. Refere-se a Hugo Pratt e à série Escorpiões do Deserto em particular: “Lembro-me de dois aspectos: a primeira, que o desenho não tinha de ser aquela coisa pré-concebida que eu imaginava que era o desenho da BD. Aquilo era uma coisa diferente, já mais próxima da arte moderna, havia ali um quase pós impressionismo incluído no tipo de desenho e, portanto, não era o desenho ortodoxo. Depois, Pratt tinha coisas completamente diferentes, preocupava-se muito com os silêncios no livro, havia uma relação cinematográfica com a BD, isto em termos formais. E em termos de conteúdo, em especial o Corto Maltese mais do que o Escorpiões do Deserto, era riquíssimo e também me abriu alguns horizontes.”

Um pouco mais tarde, aponta como importante o primeiro livro lido que não era para crianças — “O Sonho de um Homem Ridículo”, de Dostoievski. Afonso considera este conto uma súmula do pensamento do autor, embora na altura não tivesse idade suficiente para apreendê-lo e a compreensão do texto tivesse sido mais literal. A esse propósito, explica: “Um livro, como disse Umberto Eco, é uma máquina de interpretações e nós não somos leitores quando aprendemos a ler. É um trabalho infinito, nós vamos cada vez interpretando melhor à medida que vamos treinando essa actividade que é a leitura. Ao longo da minha vida fui encontrando outras camadas em Dostoievski. A maior parte dos bons livros são obras abertas, são infinitas. Não tenho, portanto, pretensões a vir a conhecer o Dostoievski. Mas é um amigo, ou seja tem sido uma presença constante na minha vida, embora não concorde com algumas coisas. Eu, o Raskolnikov e o Aliosha ainda temos umas discussões.”

Por volta dos quatorze, quinze anos foram os livros de ficção científica que adquiriram protagonismo, nomeadamente os de Isaac Asimov publicados na colecção Argonauta, da Livros do Brasil. Afonso recorda que alguns desses contos tocavam assuntos chocantes para a sua sensibilidade adolescente, como por exemplo aquele em que é descrita uma sociedade perfeita, onde o incesto é banal e até defendido cientificamente. “Há alguns livros de ficção científica que por lidarem com utopias, distopias, ideias de futuro, de esperança, com sociedades melhores ou piores, são muito reflexivos, colocam em questão muitas coisas. A ficção científica tem esse modelo, se calhar até mais que qualquer outro género: dedica-se muito a novos problemas, tenta sempre ultrapassar a fronteira, usando quase como desculpa o espaço, outros planetas, outros mundos para descrever efectivamente outros mundos, tanto interiores quanto externos. Nesse sentido é muito interessante”, defende.

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Mais sobre as leituras de Afonso Cruz dentro de dias. 😉

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