Afonso Cruz / Parte 1: Nasce o leitor

Afonso-Parte 1

Estão perante o meu pior caso de procrastinação desde que o Acordo Fotográfico existe. Conheci e conversei com o Afonso Cruz nas Correntes d’Escritas deste ano, no passado mês de Fevereiro. Era suposto o encontro durar dez, quinze minutos. Mas durou uma hora e eu nem dei pelo tempo passar. Sabia, ao desligar o gravador, que trazia para casa pano para mangas. Porém, só quando desgravei a conversa e me deparei com onze páginas de conteúdo riquíssimo — dada a vasta cultura do Afonso nas mais variadas áreas do conhecimento — é que percebi a enormidade da tarefa que me esperava e senti o peso da responsabilidade. Entrei em pânico. Conversara com um dos melhores autores portugueses, mas não sabia por onde começar a escrever um post que espelhasse minimamente tudo o que partilhou comigo de forma tão generosa… Falei desta minha angústia a algumas pessoas e foram elas que me sugeriram escrever não apenas um post, mas vários. Aqui está, portanto, o primeiro de vários textos compostos à volta da conversa que tive com Afonso Cruz acerca do seu percurso de leitor e dos livros da sua vida.

***

No princípio havia uma quinta na Figueira da Foz e nessa quinta havia uma casa com um sótão enorme, do tamanho de toda a casa. Os longos verões de infância eram passados entre a rua e esse sótão, e embora à noite tivesse medo de lá ir, durante o dia era um lugar mágico, recheado de objectos que testemunhavam vidas longas e venturosas — as do bisavô, do avô e dos tios-avós paternos. Um viveu muitos anos em África, outro foi aviador e fotógrafo e outro militar. Por isso, ali era possível tropeçar-se em lanças indígenas, máscaras tribais, presas de elefantes, dentes de hipopótamo, brinquedos de madeira e de lata (como os magníficos Spifire da Segunda Guerra Mundial), máquinas fotográficas, material de laboratório, armas obsoletas, cápsulas de balas, hélices e outras peças de aviões. Havia ainda, em contraste absoluto com este universo masculino, as roupas da avó e os sapatos de salto alto muito fino. E por fim, havia também os livros do seu pai, aqueles que ele tinha lido quando era miúdo, mais ou menos com a idade que o Afonso tinha quando se perdia no sótão dos avós.

“Foi por aí que eu comecei a ler, com a biblioteca do meu pai”, explicou-me Afonso. “Havia, por exemplo, a colecção em fascículos do Cavaleiro Andante, uma revista de Banda Desenhada dos anos 50/60, muito díspar em termos de conteúdo, tinha coisas muito boas e coisas de aventura mais básicas, mas que eram igualmente fascinantes. Alguns dos fascículos eram os primeiros Lucky Luke, outros do Tintin, Banda Desenhada de grande qualidade, acima de tudo franco-belga. Mas também havia esse registo de aventuras, como por exemplo exploradores da selva amazónica que encontram índios redutores de cabeça — que existem, apesar de serem muito efabulados neste tipo de BD — e que constituíam um universo incrível, muito fascinante. Havia também outro tipo de literatura de cordel western com alguma piada, uma literatura mais vocacionada para o entretenimento puro, sem outra pretensão. Não é um defeito, é uma característica, ainda que limite um pouco a literatura porque não há mal nenhum em entreter e ter conteúdo, ter outra linguagem. O que se passa normalmente com este tipo de literatura é que quando ela é publicada e é nossa contemporânea, tendemos a achar que é muito má. Vinte, trinta anos depois ela ganha um charme e uma patine diferente da percepção que tínhamos dela naquela altura”.

E a lista continua, passando pelos livros visionários, que tentavam prever como seria a vida no ano 2000 e falhavam redondamente nas suas antevisões, e pelos pastiches dos grandes clássicos, como aquele que colocava Gulliver em planetas distantes. Eram aventuras que fascinavam Afonso e que lhe proporcionaram, como afirmou, “talvez a sensação mais próxima da descoberta”.

“Os livros da infância do meu pai, na altura em que eu os lia, eram todos muito charmosos e tinham todos uma aura muito especial, mesmo os que eram relativamente maus. Eu passava muitas horas naquele sótão só a ler aqueles livros já muito esburacados pelos bichinhos que comem os livros. Quando penso nisso, sinto que aquele sótão era o grande protagonista da minha infância. Obviamente, eu lia também fora desse universo, mas ali estava sempre a descobrir coisas, outro tipo de coisas, não os livros que toda a gente lia e a que toda a gente tinha acesso. Aquilo era outra coisa. Eu não tinha irmãos, passava muito tempo sozinho e aquele mundo acabou por fazer quase parte da minha rede neurológica, era eu. E então era maravilhoso.”

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A história continua dentro de dias. 😉

 

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