Já li — A Campânula de Vidro

DSCF1399

PORQUE LI?

Há já muito tempo que uma amiga me desafiou a olhar para a minha estante e a ver quantos livros escritos por mulheres lá tinha arrumados. Concluí que são infinitamente menos do que livros escritos por homens e que nem sei bem porquê… No início de Junho decidi começar conscientemente a equilibrar o rácio entre autores e autoras quando tropecei nesta lista: “102 of the greatest books by female authors“. Fui à Biblioteca Municipal Florbela Espanca e “A Campânula de Vidro”, de Sylvia Plath, foi um dos livros que requisitei com o objectivo de ler mais literatura escrita por mulheres.

O QUE ACHEI?

Foi um verão estranho e sufocante, aquele em que executaram os Rosenberg. Estava então em Nova Iorque sem saber ao certo porquê (…)Não conseguia deixar de pensar no modo como os pequenos êxitos, por mim imaginados na faculdade, se esfumavam por entre as fachadas marmóreas e vítreas de Madison Avenue. Em princípio, eu devia estar a viver momentos inesquecíveis (…) Em princípio, devia estar excitada como a maioria das outras, no entanto ali estava, incapaz de reagir, tensa e vazia como o núcleo de um tornado movendo-se lentamente no meio de todo aquele frenesim à sua volta.”

Os primeiros parágrafos de “A Campânula de Vidro” anunciam o tempo — Junho de 1953 (mês em que Julius e Ethel Rosenberg, acusados de espionagem, foram eletrocutados) — e o lugar onde parte do romance decorre — Nova Iorque. E anunciam, sobretudo, o estado de espírito da narradora, também personagem principal, assim como o tom de toda a narrativa: sufocante.

Esther tem dezanove anos, foi sempre excelente aluna, ganhou diversas bolsas de estudo, está na recta final da faculdade, prestes a entrar com os dois pés na vida adulta e no mundo do trabalho. Tem pela frente inúmeras escolhas por fazer, contudo, sente-se perdida. Perdida e sufocada. Esther quer acima de tudo ser livre, mas os EUA da década de 50 do século passado impunham grandes limites às mulheres.

A par das dúvidas acerca das suas escolhas académicas, Esther revela um sentimento de revolta no respeitante ao sexismo patente na sociedade norte-americana, aos papéis convencionais atribuídos a homens e mulheres, ao machismo e ao que era esperado de si depois de terminados os estudos: casar, ser dona de casa e ter filhos.

Tinha ainda consciência de que, para além das rosas, beijos e jantares fora com que um homem inunda a mulher antes de casar, o que ele anseia secretamente é poder transformá-la depois num capacho do casamento (…). E assim comecei a pensar que afinal é verdade essa ideia de que o casamento e os filhos , constituem uma certa forma de lavagem ao cérebro que nos deixa depois paralisadas, como uma escrava num estado totalitário privado.

Paralelamente, desenvolve uma certa obsessão pelo início da vida sexual — chega a dividir o mundo entre aqueles que já dormiram com alguém e os que ainda não o fizeram — pelo tema da virgindade e pelos tabus religiosos associados ao sexo. Esther é virgem e vive apavorada com a possibilidade de engravidar caso se envolva sexualmente com alguém.

’Aquilo que odeio é a ideia de estar a ser dominada por um homem’, dissera à doutora Nolan. ‘Um homem não precisa de se preocupar com nada, enquanto eu tenho sempre medo de ficar com uma criança’”.

Ao mesmo tempo que tenta gerir da melhor forma “os apelos que surgem do fundo de si”, Esther vive uma crise vocacional. É assim que, de forma muito subtil, — tão subtil que me vi forçada a recuar no livro para confirmar exactamente quando — atravessa a fronteira finíssima que separa a sanidade da doença mental e inicia uma série de internamentos em unidades psiquiátricas.

Um livro que nem sempre li com prazer, mas de que gostei muitíssimo. Teve a virtude de me mostrar como uma alma sensível e com sede de liberdade pode adoecer, quase enlouquecer, por viver num contexto castrador (algo que, feitas as devidas ressalvas, experienciei de alguma forma) e de me levar a dar graças (de novo e sempre!) por ter nascido e viver numa época em que a sexualidade feminina se libertou de quase todos os tabus.

Advertisement

Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s