A Rita, os livros e as lições que eles contêm

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Devo a minha amizade com a Rita ao Acordo Fotográfico e, acima de tudo, ao amor que partilhamos pelos livros e pela literatura.

Conhecemo-nos virtualmente no início de 2012, tinha eu aderido havia pouquíssimo tempo à blogosfera, enquanto que a Rita já por aqui andava desde 2006 disfarçada de Uma Vespa a Abrandar. Um ano mais tarde, sem que tivéssemos tido ainda a oportunidade de nos conhecermos pessoalmente, a Rita juntou-se à equipa de colaboradores do grupo editorial onde eu trabalhava havia mais de dez anos. Só que ela estava em Lisboa e eu no Porto. Um dia, por acaso, esbarramos uma na outra na entrada da sede da empresa e fizemos uma festa. De tanto a ler e de trocarmos alguns e-mails, tive aquela sensação boa de que já a conhecia bem. Só faltavam mesmo os beijinhos e os abraços. Sentarmo-nos para conversar olhos nos olhos ainda demorou a acontecer: apenas no fim de 2014 pudemos almoçar no Porto, após o meu regresso da volta ao mundo, viagem que a Rita seguiu à distância com entusiasmo. O mesmo entusiasmo com que me apoiou quando decidi, em Novembro de 2015, avançar com o crowdfunding que me permitiu reunir dinheiro para a compra de uma nova câmara fotográfica. Esta é a razão por que a Rita faz parte, finalmente, do grupo de leitores — cerca de 400 — que tenho o privilégio de ter conhecido. E digo finalmente porque mesmo que o crowdfunding não tivesse acontecido era certo e sabido que a Rita estaria um dia por aqui. O seu lugar estava reservado há muito.

A Rita nasceu e cresceu num ambiente familiar muito ligado às letras. Recorda, por exemplo que na casa dos seus pais sempre houve muitos livros, particularmente romances policiais, com destaque para os de Agatha Christie. Depois, havia o avô jornalista, que mais do que ler escrevia muito. E por fim a avó, que era tradutora. Talvez por isso, quando era mesmo pequena e ainda sem irmãos, lhe tivesse sido tão fácil aceder a livros, jornais e revistas que se entretinha a folhear sozinha. Na escola foi sempre boa aluna e lia tudo o que era suposto ler. Contudo, a Rita afirma que só começou a criar uma relação mais próxima com os livros por volta dos dezassete, dezoito anos quando começou a ler coisas para gente crescida. “Comecei com o Vergílio Ferreira, naquela fase de definição da personalidade. Tinha uma paixão pelo senhor! Ele tinha uma casa ali em Sintra, em Fontanelas, e cheguei a ir ter com ele ao café. Sabia que ele frequentava o dito café, fui lá perguntar ao senhor Zé quando é que ele lá ia. E consegui! Estive lá um bocadinho a falar com o Vergílio Ferreira. Eu adorava-o. Tinha um fascínio por ele!”, recorda.

Mais tarde, por volta dos vinte e um anos, a propósito de uma prova feita no CENJOR — Centro Protocolar de Formação para Jornalistas — leu um excerto d’ “A Jangada de Pedra” e caíram por terra os preconceitos que tinha em relação a José Saramago, porque supostamente escrevia sem pontuação e os seus livros se tornavam incompreensíveis. Não só leu “A Jangada de Pedra” de fio a pavio, como leu tudo o que pôde do nosso único Prémio Nobel da Literatura. Hoje em dia, a par de José Saramago, aponta José Rentes de Carvalho como um dos seus autores favoritos em língua portuguesa e sublinha: “Acho brutal como é que uma pessoa com aquela idade só agora, há meia dúzia de anos, é conhecida cá, enquanto lá fora já tinha imenso sucesso”.

Mas a Rita também lê muito em inglês. Diz ela que não só adquire mais vocabulário, como pode aceder a livros que não existem editados por cá e, ainda por cima, compra-os mais baratos. Por entre os seus autores de língua inglesa preferidos aponta Paul Auster, Ian McEwan, Philip Roth, David Sedaris e Richard Zimler, que já é quase, quase português. “É engraçado, gosto sobretudo de ler coisas escritas por homens”, nota. “Realmente, livros escritos por mulheres, estou a tentar lembrar-me e leio muito poucos, é estranho…”.

No passado dia 1 de Maio, quando nos encontrámos no Parque das Nações, em Lisboa, para fazer a fotografia e falar de livros e de leituras, a Rita escolheu trazer consigo José Luís Peixoto porque, à semelhança do que aconteceu com Saramago, os seus livros ensinaram-lhe pelo menos uma valiosa lição. Um ensinamento que a Rita sabe que vai transmitir às suas filhas ainda por nascer na altura em que conversámos. Tudo começou com um livro emprestado.

Eu tinha, em relação ao José Luís Peixoto, muito preconceito. É mesmo preconceito, não tenho dúvidas nenhumas”, confessou. “Olhava para aquela personagem, uma pessoa com a minha idade, cheia de tatuagens, cheia de piercings, com um aspecto meio tosco e achava que alguém assim nunca ia ter a capacidade para escrever coisas como as que ele escreve. Ele ter ganho o Prémio Saramago, para mim era uma coisa estranha. Sempre resisti a ler os seus livros. Até que me emprestaram ‘Cemitério de Pianos’. Foi quando percebi que, ao contrário de muito escritores, ele é uma pessoa muito próxima de nós, muito como nós, que vai muito às suas raízes, põe muito dele nos livros e que não tem vergonha de se expor naquilo que escreve. Não tem vergonha nenhuma, nenhuma e acho isso maravilhoso!

Não satisfeita com a mudança provocada na Rita com o empréstimo de “Cemitérios de Pianos”, a mesmo pessoa decidiu oferecer-lhe mais tarde o “Abraço”. E a Rita, que sempre preferiu livros com grandes histórias, teve mais uma vez de pôr de parte as suas reticências e aventurar-se num livro de crónicas. Foi o livro com o qual quis ser fotografada. “Está organizado em três grandes partes: a infância, a adolescência e a idade adulta. Ele compilou crónicas feitas ao longo de anos, publicadas em vários sítios e deu-lhes um arranjo, porque quando lemos o livro não percebemos que foi feito em vários tempos. A selecção está tão coerente que se estabelece um fio condutor. Li-o num instante! Aqui ele retrata tudo — as relações, a relação com o corpo, aquilo que ele acha que as pessoas vêem nele, aquilo que ele via nele ­— e mais uma vez revelou-se uma pessoa fantástica. Aliás, na altura escrevi um post no meu blogue onde dizia que quando acabei de ler o livro aquilo que me apetecia era abraçá-lo, porque ele faz com que nos apaixonemos por si.

Se com José Luís Peixoto aprendeu a não ser preconceituosa, com Jonathan Littell e “As Benevolentes” a Rita aprendeu a colocar-se no lugar dos outros. E explica como: “São as pseudo-memórias dum oficial nazi. É tudo ficcionado, mas quando o lês parece-te uma biografia. No prefácio, o pseudo-biografado introduz o que vai contar a seguir e o que ele faz é levar-nos a colocarmo-nos no lugar dos outros. De facto, o que ele diz é: ‘Será que o leitor, se vivesse como eu no período Nazi e se tivesse a sua família em risco e tivesse de cometer atrocidades pela sua família, não ia fazer como eu?’ E eu, que acho horrível o que aconteceu no Holocausto, penso: mas será que se eu estivesse lá, e me fizessem aquela lavagem cerebral, e tivesse de proteger a minha família, não fazia o mesmo? Mesmo quando os outros fazem coisas horríveis penso: e se fosse eu? Como é que eu reagiria? Se calhar ia fazer da mesma maneira, mesmo achando horrível. Mas perante o mal, ia escolher o menor que era proteger os meus”.

E remata: “Com todos os livro em geral, nós conseguimos viver outras vidas. São viagens que fazes, viagens para outros tempos, para outros corpos. Por isso é que eu acho que quem lê consegue ser uma pessoa diferente”.

3 thoughts on “A Rita, os livros e as lições que eles contêm

  1. Deliciosa a vossa história. Posso dizer que também gosto muito de ler e que tenho particular atração por romances históricos, embora goste muito de José Luís Peixoto :), já Saramago vivo numa luta. Terei de retentar. Um livro para mim tem de me abraçar nas primeiras 20, 30 páginas sob pena de o colocar para canto. Gostei deste cantinho. Esmy

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    • Olá, Esmy! Bem vinda ao Acordo Fotográfico. 🙂
      Fico contente por saber que gostou do que faço por aqui. Se tiver tempo para investir na exploração deste “cantinho”, há cerca de 400 leitores e respectivas histórias para conhecer.
      Até já,
      Sandra

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