PORQUE LI?
Li “Une Vie” porque me foi muitíssimo recomendado pela amiga que me acolheu em sua casa, em Paris, quando lá estive no início deste ano. Ao encontrar o romance à venda por apenas 2,50 Euros, não hesitei.
O QUE ACHEI?
“Tout le monde était donc perfide, menteur et faux. Et des larmes lui vinrent aux yeux. On pleure parfois les illusions avec autant de tristesse que les morts.” (Pág. 197)
Jeanne, uma aristocrata de apenas 17 anos, deixa o convento e regressa a casa dos seus pais, um castelo na costa francesa recentemente remodelado e redecorado para recebê-la com todo o conforto. A jovem traz a cabeça e o coração cheios de esperança e de sonhos para o seu futuro. Espera, sobretudo, viver um grande amor — como aqueles que leu e releu nos romances —, um amor que lhe garanta felicidade eterna. Em poucos dias conhece Julien, que aos seus olhos parece um príncipe encantado, mas não passa de um arrivista grosseiro que lhe é infiel desde o primeiro momento. Não quero entrar em muitos detalhes para não vos estragar uma eventual leitura do romance, mas a partir daí a ingénua Jeanne só vive desgraças. No fim da história, o rumo das coisas parece recompor-se, mas as tristezas, as amarguras, as enormes desilusões já deixaram marcas físicas e emocionais profundas na protagonista. Resta aos leitores imaginar se terá sido ou não capaz de se reerguer a partir das lições duramente aprendidas.
Escrito e publicado já na reta final do Romantismo, em 1883, “Une Vie”, do autor francês Guy de Maupassant, encerra uma forte crítica social, nomeadamente no que diz respeito ao estatuto das mulheres e da sua (parca ou nula) educação, com destaque para a vida conjugal e sexual. Jeanne, como a maioria das mulheres que viveram no século XIX, não sabia absolutamente nada sobre o que acarretaria um casamento e vivia enredada num mundo de fantasias que se desmorona de forma dolorosa na sua noite de núpcias quando é, não há outra forma pôr as coisas, violada. Jeanne passa a encarar o sexo como algo nojento; Julien passa a colecionar amantes; Jeanne sente-se humilhada, sofre achaques, definha.
Para além da educação, do casamento, da família, da maternidade, da amizade, do sexo e do adultério, “Une Vie” aborda outros dois temas fundamentais para o desenvolvimento da narrativa: o dinheiro e a religião. Enquanto os pais de Jeanne herdam bens e terras, vivem desafogadamente e partilham o dinheiro de forma generosa com terceiros, Julien transforma-se num forreta e impõe um clima da austeridade à família, para que mais tarde Paul, seu filho com Jeanne, estoire a fortuna. Guy de Maupassant, aproveita ainda para desferir golpes duros na igreja católica através dos dois padres que surgem no romance: um primeiro condescendente para com os desvarios sexuais dos seus paroquianos e um segundo, pérfido, apostado em restaurar os métodos bafientos da Inquisição.
Porém, o que mais me surpreendeu, desde as primeiras páginas do romance de Maupassant, foi a enorme semelhança entre “Une Vie” (1883) e “Há Sempre um Amanhã” (1966), de Pearl S. Buck, livro que tenho ainda muito presente porque o li no Verão de 2017.
“Durante todo o seu último ano de estudante, na universidade, tivera consciência de que a sua mocidade terminara e sentira-se impaciente por iniciar a sua vida de mulher (…) Queria tudo quanto surgisse no seu caminho, inteiramente, absolutamente, a transbordar! Confiava nos anos que viriam, sentia-se audaz, com a esperança de uma longa vida, pletórica de energia no seu corpo forte, abastada de tudo quanto seria preciso para o que queria fazer.” (Há Sempre Um Amanhã, pág. 5-6)
“Jeanne , sortie la veille du couvent, libre enfim pour toujours, prête à saisir tous ler bonheurs de la vie dont elle rêvait depuis longtemps (…) se sentait devenir folle de bonheur. Une joie délirante, un attendrissement infini devant la splendeur des choses noya son coeur qui défaillait. C’était son soleil! son aurore! le commencement de sa vie! le lever de ses espérances! (Une Vie, pág. 1-47)
Não só os temas abordados são exatamente os mesmos (a educação, a família, o casamento, o adultério, o sexo, a religião, o dinheiro), como as protagonistas têm o mesmo nome (Jeanne e Jane) e vivem destinos em tudo semelhantes (o mesmo grau de romantismo, ingenuidade e ilusão iniciais, os casamentos desastrosos, a perda das respetivas famílias e bens, a ostracização por parte da congregação religiosa, o ressurgir da esperança graças à presença de crianças). Poderá ser isto apenas uma coincidência? Ou Pearl S. Buck reformulou conscientemente um enredo com cem anos, transpondo-o para a América de entre as duas guerras mundiais? Pesquisei sobre o assunto online e não encontrei respostas, por enquanto.
“Une Vie”, clássico da Literatura francesa e universal, é um romance extremamente bem escrito, com a poesia característica do romantismo, magníficas descrições de paisagens (a natureza é, por si só, um dos grandes protagonistas da história) e personagens que não se esquecem. A minha predileção vai para os pais de Jeanne que, longe de serem perfeitos, foram claramente aqueles que melhor souberam aproveitar a vida. Foram eles — os seus valores, a sua atitude, a sua lucidez, o seu sentido de humor e as suas gargalhadas — que me aqueceram o coração no decurso de uma leitura muitas vezes desoladora.
Um livro triste, é verdade. Mas um grande livro, que me recordou a cada página a enorme fortuna que é ser mulher na Europa Ocidental do século XXI. Infelizmente, é mais um daqueles títulos sem edição portuguesa disponível no mercado.