Estive cinco dias inteirinhos em Istambul e não houve um único em que não tivesse atravessado a pé as ruas de Karaköy. Por vezes logo de manhã, vinda de Bomonti, do norte da cidade, gozando as vielas quase desertas; outras vezes a meio do dia, para almoçar em esplanadas expostas ao sol; e também à noite, no regresso a casa, quando parava para beber um chá e comer um doce, e seguia depois o meu caminho, disputando com centenas de transeuntes um lugar nos passeios estreitos.
O bairro de Karaköy, antigamente chamado de Pera, fica situado a norte do Corno de Ouro, onde se enraízam as origens mais remotas da atual Istambul — antes Bizâncio e depois Constantinopla (Istambul só passou a designar-se oficialmente como tal em 1930) —, que há muitos séculos se limitava a ocupar o pedaço de terra cuja forma recorda, de facto, um corno. Embora a zona já albergasse um porto, Karaköy foi durante muito tempo um território separado da “velha” Istambul. Isso não impediu, contudo, que tanto os imperadores bizantinos e romanos, como os sultões otomanos tivessem autorizado e incentivado expressamente a fixação de estrangeiros em Karaköy ao longo dos tempos, quer por motivos comerciais, quer por razões defensivas. No Séc. XIII, por exemplo, a área é concedida a mercadores genoveses, que a fortificaram. Data desse período a construção da mui famosa Torre Gálata, hoje num ícone incontornável de Istambul. A torre acabou por dar nome à parte alta de Karaköy — Gálata.
Para além dos genoveses, foram-se instalando em Karaköy, até aos séculos XV e XVI, venezianos, catalães, gregos, arménios e judeus, nomeadamente os sefarditas expulsos da Península Ibérica. Grácia Nasi, de quem vos falei no post anterior, instalou-se aqui, fugida da Inquisição portuguesa, após um périplo de anos pela Europa renascentista. Catherine Clément, no seu romance “A Senhora”, faz referência a um tal de palácio Belvedere, que ficaria em Pera (como se chamava então a Karaköy). Por essa altura, Constantinopla já estava há muito sob o domínio do fulgurante Império Otomano e a maioria da população de Karaköy era muçulmana. Mais tarde, no Séc. XIX, durante a guerra da Crimeia, militares franceses, italianos e ingleses estabeleceram-se na zona, deixando descendência. E depois chegaram russos, já no Séc. XX, fugidos dos bolcheviques.
Assim se foi definindo a aura cosmopolita que ainda hoje vibra intensamente em Karaköy, uma das zonas mais dinâmicas de Istambul, transformada num centro financeiro e comercial. A par do urbanismo muito particular desta zona da cidade — o bairro ocupa uma colina sobre o Bósforo e as suas ruas estreitas, tão similares às do centro histórico de Lisboa, descem, tortuosas, até ao mar —, o comércio pujante de Karaköy é uma atração que vale por si, rivalizando com monumentos, museus, mesquitas, sinagogas, igrejas e tantas outras coisas que ali se podem visitar.
Vale a pena tirar um dia (e porque não uma noite) para explorar com calma os cafés, os bares, o restaurantes, as pequenas frutarias onde se fazem sumos na hora, as mercearias especializadas em produtos turcos — doces, azeitonas, conservas, queijos, o surpreendente vinagre de romã! — as galerias de arte, as livrarias e as lojas dedicadas ao design turco onde podem ser adquiridos produtos requintadíssimos — tecidos, cabedais e olaria à cabeça. A área, que está ocupada por muitos hostels, é um polo de atração para os mais jovens, e é em Karaköy que os boémios e artistas de Istambul procuram habitar.
O que também não falta em Karaköy são as lojas de souvenires, está claro. E foi num desses espaços comerciais que fui encontrar a Seden a ler, no fim do meu primeiro dia em Istambul, aquele em que saí de casa distraída, sem me aperceber que levava a máquina fotográfica sem bateria. Valeu-me o telemóvel, com o qual fotografei o dia todo e que me permitiu captar esta leitora. Infelizmente, Seden mal falava inglês e a nossa conversa foi breve. Pude apenas saber que lia um romance histórico — o seu género literário preferido —, que ela mesma tinha comprado, escrito por um dos seus autores favoritos: Rıfat Ilgaz.
Rıfat Ilgaz (1911-1993) foi professor de literatura, poeta e romancista. Publicou mais de sessenta obras ao longo da sua vida e, embora nunca se tenha envolvido ativamente na política, os seus textos neo-realistas expressam preocupações sociais tendencialmente de esquerda, o que lhe valeu problemas com as autoridades. Chegou a ser preso. Dou-me agora conta das semelhanças impressionantes com o percurso do nosso Manuel da Fonseca — nascido em 1911 e falecido em 1993! —, membro do Partido Comunista Português, cuja obra também se inscreve no neo-realismo e que foi igualmente preso por causa dos seus ideais políticos.
As pesquisas que fiz para saber mais sobre o livro que Sedan lia — “Karartma Geceleri”, algo como “noites sem memória” — levam-me a concluir que o romance terá muito de autobiográfico, já que relata a história de um professor e escritor que tenta escapar à polícia e à prisão na Turquia, durante a Segunda Guerra Mundial. A obra foi adaptada ao cinema em 1990 e o filme pode ser visto na íntegra no Youtube (com legendas em inglês). Infelizmente, a obra de Rıfat Ilgaz quase não está traduzida para outros idiomas e em português não é possível ler absolutamente nada deste autor turco. Quem sabe um dia?