PORQUE LI?
A pausa de Novembro para festejar o meu aniversário chegava ao fim e aproximava-se uma nova viagem de comboio entre Portimão e o Porto. Continuava sem vontade de terminar “Amor Líquido”, de Bauman. Por isso, fiz uma última investida às estantes dos meus pais em busca de um livro que pudesse ler da capa à contracapa nas cinco horas de viagem que me esperavam. Escolhi “Alves & C.ª”, de Eça de Queirós, numa edição distribuída com o jornal “Expresso”. Li-o em pouco mais de três horas.
O QUE ACHEI?
“(…) que coisa prudente é a prudência!” (Pág. 116)
Nunca li a “Odisseia”, de Homero, mas vi “De Olhos Bem Fechados”, de Stanley Kubrick. Ambos, livro e filme, são resgatados na obra “Um Mundo Iluminado”, que ando a ler por estes dias. Os autores exploram, a determinado momento, o paralelismo entre as histórias de Helena e Menelau e Alice e William.
No livro, Helena trai Menelau fugindo com Páris. Anos mais tarde, Helena conta o episódio de traição no decorrer de um jantar, perante Menelau e uma série de convidados, sem vestígios de qualquer sentimento de culpa e com aprovação do marido. Ninguém se mostra escandalizado. No filme, Alice admite que teria traído William caso um jovem oficial da marinha, que conheceu num jantar e cuja imagem a perturbou profundamente, assim o tivesse desejado. Chocado com a mera possibilidade de uma traição por parte da mulher, William entra numa espiral de sexo promíscuo, que põe à prova os seus limites morais e da qual se arrepende.
O que justifica a diferença nas reações a episódios semelhantes separados por quase três mil anos? Explicam os autores de “Um Mundo Iluminado” que para os gregos de Homero a vida bem vivida consistia “em estar em sincronia com os deuses (…) e numa relação adequada com aquilo que é considerado sagrado na sua cultura”. Logo, Helena apenas estava a viver em sintonia com Afrodite. Uma forma de estar que não podia contrastar mais com a atual moral judaico-cristã, que exige ações e pensamentos que respeitem os Dez Mandamentos — Não cometerás adultério, por exemplo.
Nada acontece por acaso, muito menos os livros que nos vêm parar às mãos. “Um Mundo Iluminado”, que é excepcional, surgiu-me à frente dos olhos poucas horas depois de ter terminado “Alves & C.ª”, a novela de Eça de Queirós que aborda, de novo, a questão dos triângulos eróticos através da história de Godofredo e Ludovina. “Um Mundo Iluminado” — que eu não tinha intenção de comprar tão cedo, mas que acabei por adquirir por impulso — iluminou, de facto, a minha interpretação do texto de Eça, que parece sugerir uma terceira via — a via lusitana? — para responder ao adultério, quase como uma síntese apenas possível graças a um traço muito particular dos protagonistas e, por extrapolação, dos portugueses em geral (porque é essa a crítica que subjaz): a prudência. Ou deverei dizer, como o outro, a mansidão?
Escreve Maria Filomena Mónica, no prefácio a esta edição de “Alves & C.ª”, que “este é o livro mais amoral de Eça (…) Os burgueses não tinham grandeza, nem fibra, nem estatura. Portugal surge como um país banhado por uma maré suja, onde todos tentam sobreviver a qualquer preço.” Se Helena e Menelau encaram o adultério com a naturalidade exigida aos gregos dos tempos de Homero (tese), William tortura-se, à boa maneira judaico-cristã, com uma traição que Alice não consumou e com a culpa das suas próprias traições (antítese), enquanto Godofredo cede primeiro à cólera e humilha Lulu, mas depois tudo perdoa, não por que é um bom cristão ou porque a ama profundamente, mas porque é acima de tudo um pobre comodista. Godofredo não desencadeia uma guerra como Menelau, nem se entrega a aventuras sexuais como William. Pretende apenas, entre outras coisas comezinhas, voltar a comer ovos decentes ao pequeno-almoço, como aqueles que só Lulu sabe cozinhar (síntese).
Um retrato ainda atual da sociedade portuguesa, feito com a inteligência, a perspicácia e o fino sentido de humor de Eça de Queirós, que nunca me desilude. Voltar a Eça é como voltar ao aconchego de casa depois de um daqueles dias em que o mundo lá fora parece insistir em ferir-me com a sua vulgaridade.