Ultimamente, tenho fotografado menos leitores. Porque a vida profissional deixou de ser tão monótona e o tempo para escrever mais difícil de encontrar, porque as viagens me tornaram mais exigente quanto aos possíveis cenários, porque passei a dar mais ouvidos à minha intuição e a não forçar-me a fotografar só porque me cruzo com alguém que lê e estou sem assunto para o Acordo Fotográfico. Mas, honestamente, também não vos sei dizer por que razão decido fotografar um leitor quando o vejo. Apenas olho para a pessoa e sei que quero fazer aquela fotografia e sinto que quero falar com ela. Cheguei a pensar que a minha falta de apetite por fotos e leitores se devia a uma certa preguiça, mas hoje sei que não é disso que se trata. É tão só uma outra fase, que devo e quero aceitar tal como é, sem angústias.
Tinha acabado de fotografar e conversar com a Francisca quando vi a Mariana à saída dos jardins do Palácio de Cristal. E aconteceu como vos dizia no parágrafo anterior: soube que queria fotografá-la e conversar com ela, por isso tive de me conter para não correr na sua direção. Porque a queria assim, com o seu casaco de crochet colorido, sentada sobre a relva verde e sob o céu azul, com a cúpula do pavilhão Rosa Mota e a palavra “Porto” em pano de fundo, tudo banhado pela luz do fim da tarde e do início de Outono, que parecia dourar o mundo apenas por causa dela e do seu livro.
A Mariana é estudante de Artes e Humanidades na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com uma especialização em Artes do Espetáculo o que, recentemente e à semelhança da Francisca, a levou a interessar-se mais por performances do que livros. Mas durante as férias aproveita sempre para ler, mesmo que esteja a trabalhar, como acontecia na Feira do Livro do Porto.
Aproveitava, por isso, um intervalo nas suas tarefas para ler mais umas páginas de “Bartleby & Companhia”, do autor catalão Enrique Vila-Matas, um romance sobre um empregado de escritório que abraça a tarefa de escrever sobre autores que deixaram de escrever e se remeteram ao mais absoluto silêncio. Para o título do livro, Vila-Matas recupera o personagem do conto “Bartleby”, de Herman Melville, onde se conta a história de um escrivão que depois de contratado para trabalhar num escritório de advogados começa a recusar cumprir as suas tarefas desculpando-se com um lacónico “preferia não o fazer” (uma ideia que me arrancou gargalhadas, me remeteu para o universo dos Monty Python, confirmando que Herman Melville estava muito à frente do seu tempo!). Dizem os entendidos na matéria que a negligência de Bartleby simbolizou a negligência do próprio Melville para com a escrita depois da publicação de “Moby Dick”.
“Foi um professor da faculdade que nos falou deste livro que se transformou, para mim, numa ideia fixa. Havia já muito tempo que queria lê-lo e acabei por comprá-lo aqui na feira, por impulso, porque estava com um bom preço. Estou a adorar estes personagens da literatura do não, estas notas de rodapé de um livro que não existe, a escrita leve, sarcástica e cínica. Tudo resulta muito interessante.”
Disse-me a Mariana que os universos que chegam até si através da leitura são indispensáveis e que embora goste de romances a sua preferência vai para textos dramáticos e poéticos, que adora. Aponta “À Espera de Godot”, de Samuel Becket, e “O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa) como os livros da sua (curta) vida.
“Leio ‘O Guardador de Rebanhos’ desde pequena, quando era adolescente trazia o livro sempre comigo. Considero-o especial e identifico-me muito com os poemas do Alberto Caeiro: a relação com a natureza, a recusa da existência de Deus, a necessidade de olhar para o que nos rodeia, a capacidade de nos conectarmos com o que é sensorial.”
Numa época em que se afirma todos os dias que os mais jovens não leem, dou-vos o exemplo da Mariana. Que seja muito mais do que a exceção que confirma a regra. Que seja esperança.