Joana, em Shiraz

Tenho chegado a Shiraz ao fim do dia, vinda de Yazd, a norte, e depois de uma tarde passada em Persépolis. Talvez um dia siga outro roteiro, talvez comece a viagem pelo sul do Irão, talvez chegue a Shiraz ao amanhecer. Mas por agora, a entrada na cidade tem coincido com o pôr do sol, quando o carro rola pela estrada 65, que rasga as montanhas Zagros, desce em direção a um vale extenso e Shiraz se anuncia lá em baixo, em forma de constelação, à medida que a iluminação pública se acende, realçando bairros e avenidas. À alegria de voltar a um lugar que me faz feliz, alia-se a melancolia do crepúsculo e a consciência de que a viagem à Pérsia está a chegar ao fim. Daqui regresso a norte, num voo que me leva a Teerão, e depois a casa, em Matosinhos.

Os documentos históricos mais antigos que chegaram até nós — umas placas de argila onde o nome da cidade foi registado em escrita cuneiforme — atestam que Shiraz existe há cerca de dois milénios (ainda que alguns aleguem que as origens da cidade remontam a quatro mil anos). Durante o Primeiro (de 550 a 330 a.C.) e o Segundo Império Persa (de 224 a 651 d.C), Shiraz gozou de alguma relevância regional por se encontrar entre cidades mais importantes, mas só após as segundas invasões árabes é elevada a capital de província de Fars, em 693. Sob a égide de várias dinastias árabes, a cidade cresce, são ampliadas as suas muralhas, construídas mesquitas e palácios.

Este património não só é poupado pelos exércitos invasores de Gengis Khan (em 1218) e de Tamerlão (em 1382) — porque os soberanos de Shiraz optaram por se submeter aos inimigos — como é incrementado. Embora os virulentos mongóis tenham obliterado do mapa muitas cidades persas, a verdade é que também se revelaram grandes patronos das artes e foi sob o seu domínio que o Farsi substituiu definitivamente o árabe como língua franca. Nesta fase, entre os séculos XIII e XIV, florescem em Shiraz artistas, filósofos, místicos e poetas, de entre os quais se destaca Hafez, cujo túmulo e jardim envolvente compõem o meu lugar predileto na cidade.

Após a morte de Tamerlão, em 1405, a ocupação timúrida agoniza durante o século XV. É Ismaíl Safavi que lhe desfere o golpe final: reconquista todo o território a partir de Ardabil (a norte, junto à fronteira com o atual Azerbaijão), inaugura a dinastia Safávida e o Terceiro Império Persa, que vigora entre 1501 e 1722. Vive-se, em todo o país, um renascimento cultural e o Xiismo é adotado como religião oficial do Estado. Shiraz mantém-se capital da província de Fars e é dotada de mais palácios e edifícios requintados. À cidade chegam comerciantes europeus seduzidos pela fama do vinho produzido nos arredores, o mesmo que a Revolução Islâmica de 1979 viria a proibir. As centenas de adegas existentes na zona fecharam e o Irão perdeu, até hoje, o estatuto de produtor vinícola.

Desenganem-se, contudo, aqueles que pensam que o Shiraz (ou Syrah, em inglês) que chega às nossas mesas descende das castas persas. Sim, seria poético se uma casta proscrita pelo radicalismo religioso consumasse a sua vingança espalhando-se pelo “mundo livre”, mas testes de ADN levados a cabo em 1998 puseram uma pedra sobre o mito: não foi um cruzado gaulês que levou uma videira consigo no regresso a casa; a casta francesa a que chamaram Shiraz (devido à corruptela da palavra scyras) resulta tão só do cruzamento natural de duas castas do vale do Ródano.

Em meados do século XVIII é a vez dos afegãos invadirem a Pérsia, pondo fim ao Império Safávida. Um cerco de vários meses, uma sucessão de saques e vários sismos levam Shiraz ao declínio: a maior parte dos edifícios históricos é destruída ou danificada e a cidade perde três quartos dos seus habitantes. O caminho da prosperidade só é retomado na segunda metade do século XVIII, quando Karim Khan Zand, também ele vindo do norte da Pérsia, reconquista grande parte do antigo império e faz de Shiraz a sua capital, em 1747.

Apesar de ter inaugurado a curta dinastia Zand e de ter governado a Pérsia de facto, Karim Khan nunca quis outro título que o de “regente” — vakil, em farsi —, palavra que designa parte substancial dos monumentos que podemos visitar na moderna Shiraz. Recordado até hoje pela sua modéstia, este soberano de origens humildes foi justo, benevolente, generoso e muito mais interessado no bem-estar do seu povo do que na guerra e na glória. O seu reinado inaugurou um período de paz, crescimento económico e obras públicas. Em Shiraz envolveu cerca de doze mil homens na construção de um bairro real que passou a incluir uma fortaleza (Arg-e Karim Khan), uma mesquita (Masjed-e Vakil), um dos melhores bazares cobertos de todo o Irão (Bazar-e Vakil), banhos públicos (Hammam-e Vakil) e inúmeros edifícios administrativos.

Infelizmente, os governantes que o sucederam não cuidaram desta herança: os Qajar (de 1789 a 1925) destruíram a fortificação da cidade e transferiram a capital para Terrão em 1795; os Pahlavi (de 1925 a 1979) continuaram a negligenciar o bairro real e a delapidá-lo devido a um deficiente planeamento urbanístico. Nos anos trinta do século passado, a inauguração da linha férrea que liga Teerão ao Mar Cáspio e ao Golfo Pérsico fez com que a cidade perdesse relevo nas rotas comerciais. Hoje, Shiraz — a sexta maior cidade do Irão, com quase dois milhões de habitantes — é um centro administrativo e alberga um famoso polo universitário, fazendo jus à centenária reputação de urbe culta e intelectual.

No seguimento da Revolução Islâmica tem sido feito um esforço significativo para recuperar o património edificado em Shiraz pela dinastia Zand, sobretudo porque foi reconhecido o seu grande potencial turístico — primeiro para os visitantes iranianos, que viajam muito dentro do país, e depois para os estrangeiros, que hoje chegam aos milhares.

Apesar da área imponente que ocupa (mais de oito mil metros quadrados) a Mesquita Vakil impacta pelo seu despojamento, geometria e elegância. São belíssimos os azulejos que a decoram e o átrio para as orações da noite — formado por dezenas de arcos e cúpulas sustentadas sobre 48 colunas trabalhadas —, tem um efeito hipnótico particularmente apreciado por fotógrafos e muitas vezes comparado ao Alhambra, em Espanha. Visitá-la depois do sol posto é uma experiência inesquecível. Ao lado, no Bazar Vakil, podemos passar um dia inteiro a fazer compras. Este ano, descobri lá dentro cafés e um pequeno restaurante a que voltarei com toda a certeza na próxima visita a Shiraz. Na Fortaleza Karim Khan, os trabalhos não parecem terminados, mas ao observarmos as fotografias que ilustram o estado do espaço na década de oitenta, quase não o reconhecemos. No centro do monumento, impõe-se um grande laranjal, que estava em flor na última primavera. Enlevou-me com o seu intenso aroma adocicado e proporcionou-me uma sombra abençoada. Muito perto dessa fortaleza, fica mais um edifício mandado erguer por Karim Khan, um pequeno pavilhão octogonal onde o vakil recebia os dignitários estrangeiros. Hoje, esta joia da arquitetura Zand com uma cúpula e interior exuberantes, alberga um pequeno museu cuja visita recomendo. Foi no jardim frondoso que o rodeia, que fotografei a Joana a ler. Aproveitava uma pausa no exigente programa de viagem ao Irão que eu liderava pela segunda vez em seis meses.

Embora sejamos ambas de Portimão, estive cerca de 25 anos sem ver a Joana. A bem da verdade, somos de gerações diferentes e ela devia ter pouco mais de quatro anos quando eu entrei para a faculdade e fui viver para Lisboa. Foi surreal que o nosso reencontro acontecesse no aeroporto internacional de Teerão — passado tanto tempo, a milhares de quilómetros de casa, noutro continente — na manhã em que fui esperá-la e a vi surgir nas escadas rolantes feita mulher, doutorada e com carreira profissional em Londres.

Que a Joana seja leitora não me surpreendeu de forma alguma. Os seus pais foram professores no meu antigo liceu e eu sei que os livros são como o quinto elemento da família. É por isso que ela define a sua relação com os livros como “antiga”, salientando que começou a ler quando tinha quatro ou cinco anos. “A minha mãe irritava-se comigo quando íamos ao supermercado, porque deixava-me escolher um livro e quando chegávamos à caixa eu já o tinha lido”, recorda.

Contou-me a Joana que leu muito até entrar para a faculdade. Houve até um verão, por volta dos seus nove ou dez anos, em que chegou a ler noventa e dois livros! Por essa altura, o livro da sua vida era “Matilda”, de Roald Dahl, sobre “uma miúda que aprendeu a ler sozinha e que tinha uma mente tão poderosa que conseguia fazer contas à velocidade de um computador e mover coisas só com o olhar. O número de horas que eu passei a olhar para objetos fixamente a ver se eles se mexiam!

A partir dos doze anos, foi a saga de Harry Potter que leu e releu mais vezes, porque foi crescendo com os personagens. Eram, de certa forma, substitutos para as amizades ou relações que lhe faltavam: “Numa altura em que eu sofria de bullying na escola, o Harry Potter era um escape que me permitia imaginar que as pessoas com “poderes especiais” um dia iriam para uma escola onde conheciam pessoas com interesses semelhantes — o que aconteceu quando acabei por ir para Cambridge, que é uma Hogwarts da vida real. Para além disso, tinha na Hermione Granger — uma super boa aluna, sempre com o braço no ar, que se torna uma heroína da história ­— a esperança que a vida acabasse por correr bem às pessoas inteligentes.”

Com a entrada para a faculdade, a chegada à idade adulta e os desafios da vida social e profissional, a Joana afastou-se da leitura. Mas voltou a encontrar-se nos livros há pouco tempo para superar uma desilusão. “Atualmente estabeleço metas de leitura através de aplicações como o Goodreads. O meu trabalho é muito exigente e a carga horária pesada, mas o ano passado já consegui ler vinte e cinco livros.

Nesta sua primeira visita ao Irão, decidiu comprar uma edição bilingue de “Divan”: “Já tinha ouvido falar muito dos poetas persas, especialmente de Rumi e de Hafez. Tinha pensado comprar livros deles e ontem, estando no túmulo de Hafez e vendo a relação especial dos iranianos com o poeta, decidi que seria este o livro a comprar. Ouvi uma guia ler em persa um poema de Hafez para um grupo de turistas e achei tão musical. E também por causa da beleza do poema que a Maryam nos traduziu para inglês. Para além disso, esta edição é muito bonita, é um livro-objeto muito bonito. Apesar de eu ser da geração do Kindle, ainda gosto de ler livros em papel.

O livro da Joana tinha sido comprado havia apenas duas horas, na pequena loja de souvenires da Fortaleza Karim Khan. Não tinha, por isso, passado da introdução onde aprendeu que “Hafez é uma figura controversa porque apela à alma iraniana e ao religioso, mas também ao profano, pelo que os xiitas têm uma relação dúbia com o poeta. Por exemplo, esteve perto de ser condenado à morte por causa de uns versos onde põe em causa a vida após a morte, que é um dogma islâmico.

Este livro de Hafez foi juntar-se a outros dois que a Joana tinha levado consigo para o Irão — “Tradutor de Chuvas”, de Mia Couto e “Life Times”, de Nadine Gordimer — comprados numa viagem a Moçambique: “Comprei o do Mia Couto no aeroporto de Maputo e o de Nadine Gordimer no aeroporto de Joanesburgo, durante a escala. Vi muitos livros de autores africanos que não conhecia e então comprei oito de uma assentada. Ainda não os li todos. Gosto muito de ler livros de lugares e perspetivas diferentes. É uma forma de continuar a viajar e alargar a visão, que é muito centrada no ocidente. O livro do Mia Couto anda comigo há muitos meses e leio um poema de vez em quando. Como acho que não tenho muito jeito com as palavras, adoro ver como ele consegue, com uma linguagem tão simples, construir um universo tão bonito. O de Nadine Gordimer é um livro de histórias curtas, o que é bom para ler calmamente em viagem. Gosto de histórias curtas, sobretudo quando bem escritas. São um instantâneo sobre a vida de um personagem, num momento fugaz e depois passamos à frente. É um livro que recomendo a fãs deste género literário, no qual Gordimer é sublime, conseguindo tornar interessantes histórias tão distintas como um amor entre dois jovens separados pela guerra ou a biografia de uma ténia — sim, o parasita. Recomendo-o também a todos aqueles que não se sintam desencorajados pelo desafio de ler quase quinhentas páginas de contos (que valem bem a pena!) e a quem queira ter um olhar diferente, com pontos de vista de personagens distintos, sobre a África do Sul ou a colonização de África no geral.”

Incapaz de escolher o livro da sua vida (como a compreendo…), a Joana prefere falar dos que a marcaram mais recentemente: “Anna Karenina”, de Tolstoi e “Americanah” da Chimamanda Ngozi Adichie. “O primeiro por ser a história de uma mulher que não se conforma com o seu papel de mãe e o que é esperado dela por parte da sociedade, e se revolta e segue o seu coração mesmo que as suas ações sejam classificadas por quase todos como deploráveis. O segundo, porque é uma história que me diz imenso sobre a ambiguidade de ser emigrante e ter deixado algo para trás, mas também a dificuldade que é regressar quando a experiência de emigrar nos deixou com sonhos e valores diferentes, que não são compreendidos necessariamente por quem nunca saiu do país. Isso e uma secção sobre cabelos rebeldes com a qual me identifiquei bastante! No entanto, se tivesse que escolher um livro que li muito nova, já reli inúmeras vezes e esteve comigo ao longo da vida, teria de ser o “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen. Como alguém que reclama bastante, que tem língua afiada e desafia certos preconceitos (sendo no entanto culpada de outros), sempre me identifiquei com a Lizzie Bennett. E claro que também adoro o Mr. Darcy.

Em 2001, ao ler “Lua de Mel no Irão” — vivia eu outra vida, era eu outra Sandra — meti na cabeça que um dia visitaria a antiga Pérsia. Demorei quinze anos a concretizar o sonho, e quando isso finalmente aconteceu tive o privilégio de visitar o país duas vezes em apenas seis meses. No decorrer desse sonho vivido, reencontro a Joana, descobrimos o muito que temos em comum e começámos uma história de amizade que parecia estar condenada a acontecer. Durante quinze dias — nas estradas, nas ruas, nos hotéis, nos monumentos do Irão — as nossas conversas sobre livros (entre tantos outros assuntos) levaram-nos a fazer uma viagem dentro da viagem. Toda essa riqueza, já ninguém nos tira e garanto-vos que é do melhor que se pode levar desta vida.

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