PORQUE LI?
Há coisas que acontecem na nossa vida — boas ou más — e que se esgotam nesse momento. Podemos tirar lições desses eventos, mas quando os recordamos eles foram só isso, um momento no tempo sem implicações no futuro. Depois, há coisas que acontecem na nossa vida e que desencadeiam uma sucessão de episódios, à semelhança de um efeito dominó. Sejam esses episódios bons ou maus, gosto de olhar para trás, ver como se foram encaixando uns nos outros e fazer-lhes a cronologia.
Em Outubro do ano passado, em Barcelos, entrei numa espiral de bons momentos sem que disso suspeitasse. Foi quando conheci a Margarida Figueiredo, professora de Português na Escola de Viatodos, que moderou a minha primeira participação pública numa palestra sobre Biblioterapia e me salvou de uma prestação que, sem ela, teria sido sofrível.
Dona de uma energia inesgotável (penso muito no caldeirão de Panoramix quando estou com ela…), a Margarida, uma das maiores consumidoras de livros que já conheci, é daquelas pessoas que está sempre a fazer algo em prol da língua portuguesa e da literatura, sobretudo na escola, mas também nas associações a que pertence. Foi na Escola de Viatodos que a reencontrei, em Abril passado, quando fui falar do Acordo Fotográfico e da Biblioterapia no decorrer da Semana da Língua Portuguesa. Nessa noite apresentou-me ao Abel Neves, de quem já me tinha falado com muito entusiasmo em Barcelos, e que eu conhecia vagamente como autor porque os seus livros me tinham passado pelas mãos quando era livreira. Voltámos a estar todos juntos recentemente em Braga, na casa da Margarida, dona de um coração em permanente expansão, que fez questão de organizar em sua casa, para os amigos, uma apresentação do mais recente livro de Abel Neves — “O Bibliófago e mais historietas breves”. Uma tarde intimista, memorável.
Foi assim, portanto, graças a esta sucessão benfazeja de eventos, que “O Bibliófago e mais historietas breves” me veio parar às mãos, gentilmente oferecido e autografado pelo autor. E mesmo que não nos voltemos a encontrar tão cedo, o que eu acho difícil, a extensa obra de Abel Neves, que só agora começo a descobrir, garante-me muitas mãos cheias de bons momentos, que poderei continuar a encaixar nesta cronologia.
O QUE ACHEI?
“Cada pedacinho sabia-lhe bem. Era o gosto certo. Comia, comia, comia, comia, cada pedacinho. O prazer primeiro e último. Até que estourou. Coração para um lado e o resto para o outro.”
Este conto, da página 39, é o mais pequeno dos oitenta que integram “O Bibliófago e mais historietas breves”. Um dos poucos, talvez, em que quase nada se sabe acerca do protagonista, nem mesmo o nome.
Na maioria das historietas, contudo, é-nos mais fácil imaginar os personagens, que não só têm nomes, mas também manias, vícios, impulsos incontroláveis, cometem pequenas loucuras, extravagâncias ou atos de rebeldia que irrompem por entre vidas de aparente normalidade ou sufocante aridez. Como, por exemplo, o Dr. Almerindo, que come pedacinhos de livros em bandejas de prata; o Sr. Varela, um desempregado que tem como objetivo pesar menos de dezoito quilos; o Gervásio, que deseja a morte da avó entrevada; a Florência, uma gorda que ficou para tia e vê sexo em tudo; o Vesgo, carteirista; o Franco, que vive em união de facto com uma porca; o Casimiro, que odeia o cão da mulher; o Leonel, um tipo ciumento; a Márcia, que põe um piercing na língua; o Albino, reformado, revoltado e graffiter; o Quecas-Garanhão ou o Exótico, que no balneário da piscina espreita as pilas dos outros utentes.
Os episódios inusitados e o sentido de humor arrancar-vos-ão gargalhadas. A crítica social camuflada sob um certo nonsense dar-vos-à que pensar. E porque o Abel Neves, para além de dramaturgo e romancista, também é poeta, muitas das historietas são feitas de imagens, de detalhes e de uma forma de delicadeza a que a poesia não é alheia. Esta é a parte que vos porá um brilhozinho nos olhos.
“As fotografias ardiam, o jardim ardia e eles ali abraçados um ao outro, paralisados e esquecidos. O mundo a arder e eles ali, abraçados.” (pág. 78)
“O Bibliófago e mais historietas breves”. Obviamente, recomendo-o. Entretanto, coloquei “Cornos da Fonte Fria” na minha lista de leituras.