A conspiração de Hafez

No Irão, os poetas são heróis e um dos maiores chama-se Hafez.

Assim como um bom muçulmano deve rumar a Meca pelo menos uma vez na vida, os persas, mais de seiscentos anos após a morte de Hafez, continuam a peregrinar até ao seu túmulo — num lindo jardim de Shiraz — vindos de todas as partes do país, para lhe prestar a mais simples e delicada homenagem: murmurar de cor um poema seu, enquanto tocam na lápide de alabastro branco e, eventualmente, depositar uma flor.

Da sua vida, pouca informação chegou até nós e os acontecimentos que se relatam assemelham-se a episódios místicos ou milagrosos. Nascido Khajeh Shamseddin Mohammad (algures entre 1310 e 1325), diz-se, por exemplo, que ainda adolescente decorou o Corão, o que lhe valeu o cognome d’ “O Memorizador”, isto é, “Hafez” em persa, nome que o imortalizou. A sua memória portentosa ter-lhe-á permitido, também, decorar grande parte das obras de outros poetas persas notáveis, tais como: Saadi, Rumi e Nezami.

Por ter perdido o pai cedo, Hafez começou a trabalhar numa padaria e foi como entregador de pão num bairro abastado que viu um dia a belíssima Shakh-e Nabat. Perde-se de amores por ela. Mas porque a sua paixão não foi retribuída, Hafez inicia aquela que terá sido a sua primeira vigília mística (quarenta dias e quarenta noites junto ao túmulo de Baba Kuhi, outro poeta iraniano sufi), numa tentativa de concretizar espiritualmente a união com a sua amada. Nesse retiro ter-lhe-á aparecido um anjo. Estes acontecimentos terão influenciado determinantemente a sua poesia lírica, quase sempre dedicada a Shakh-e Nabat e ao êxtase provocado pelo amor e pela inspiração divina.

Aos vinte e poucos anos, Hafez torna-se poeta da corte e passa a ensinar o Corão na universidade. Contudo, a sua relação com as autoridades nem sempre foi pacífica. Embora não haja provas concretas disto, consta que o seu espírito crítico, a poesia de protesto e o dedo apontado à hipocrisia religiosa fizeram-no cair em desgraça junto de um dos soberanos, tendo sido forçado ao exílio em Esfahan e Yazd. Datariam dessa época os poemas dedicados à sua saudosa cidade natal, Shiraz.

Mais tarde, aos sessenta anos, regressado há muito a Shiraz e de novo a ensinar o Corão, Hafez inicia uma nova vigília de quarenta dias e quarenta noites, mantendo-se sentado num círculo que ele mesmo desenhou no chão. Ao quadragésimo dia, levantou-se e foi ao encontro do seu patrono, o Mestre Attar, que o recebeu oferecendo-lhe um copo de vinho. Ao beber, o poeta terá atingido um estado de “consciência cósmica” que marcará, também, a sua obra. Até à sua morte, aos 69 anos, a poesia produzida por Hafez versará sobretudo acerca da união espiritual com Deus.

As alegrias do amor, da espiritualidade, do vinho, a beleza de Shiraz e os dos seus jardins são os temas centrais da obra poética de Hafez, que se encontra reunida num volume intitulado “Divan”, considerado o pináculo da literatura persa. A par do Corão, este é o livro que todos os iranianos (e persas de outras nacionalidades, como afegãos, paquistaneses ou tajiques) têm nos seus lares e é hábito colocar ambos sobre a mesa do Noruz, a grande festa que a cada equinócio da Primavera assinala o novo ano persa. Os iranianos sabem muitos dos seus poemas de cor ou pelo menos alguns versos, que são constantemente citados à laia de provérbios ou máximas. Adquiriu-se também o hábito de ler o futuro nos poemas de “Divan” bastando, para tal, abrir o livro aleatoriamente e interpretar as mensagens dos textos. Ou então, deixar que um delicado periquito, junto à entrada que dá acesso ao mausoléu, escolha por nós um verso de Hafez impresso num pequeno papel colorido.

Cheguei ao entardecer. Havia uma grande fila de iranianos e alguns estrangeiros para a compra de bilhetes. Os rostos espelhavam solenidade, expectativa e alegria. Nesta minha segunda visita a Hafez (que privilégio!), fui recebida por pássaros, uma luz dourada, temperaturas amenas e um intenso cheiro a flores. Entrei sem saber que ali, no Jardim de Musalla onde o poeta vive até hoje, me esperava um dos momentos mais emotivos deste regresso ao Irão.

Caminhei pela alameda larga. À direita e à esquerda, forma-se um jardim de pinheiros, ciprestes e laranjeiras. Ao centro, um canteiro de relva viçosa — ladeado por vasos com pequenas buganvílias, rosas e tantas outras flores —  indica-me o caminho. É preciso seguir em frente, até à escadaria que dá acesso a uma ampla varanda e daí avistar, por fim, o pavilhão que cobre o túmulo de Hafez. Lá muito ao longe adivinham-se as montanhas Zagros.

     

A estrutura circular, à qual se acede subindo mais cinco degraus, eleva-se a um metro do chão e está rodeada por oito colunas que suportam uma cúpula de cobre. Por fora, o material adquiriu a característica cor verde que resulta da sua oxidação (curiosamente, o verde está intrinsecamente associado ao Islão por referir-se em vários versículos do Corão que essa é a cor das vestes no paraíso). Por dentro, a cúpula está decorada com azulejos multicolores, que formam padrões geométricos. Sob essa cúpula fica a lápide de alabastro, à qual as mãos fortes de um artista-escultor arrancaram delicados caracteres persas: são versos de Hafez transformados em epitáfio.

Um guarda, mantém-se junto ao túmulo. Vê chegar os visitantes, famílias e grupos de amigos com câmaras fotográficas e telemóveis em punho. Fazem fotografias com o mausoléu em pano de fundo e depois sobem os degraus, demoram-se junto da lápide, tocam-na, recitam poemas baixinho, emocionam-se, tiram mais fotografias. Uma guia lê um poema de “Divan” em persa, para um grupo de turistas ocidentais. Quando termina, decido eu também recitar um poema. A Joana, que viajou comigo, empresta-me “Tradutor de Chuvas”, de Mia Couto, um livro que traz na mala há meses. Escolho um poema aleatoriamente, ergo a voz e leio. Uma menina ouve-me, a boca aberta, os lábios em círculo, os olhos esbugalhados. Depois afasto-me para passear pela área do jardim que fica para lá do túmulo. Num dos recanto vejo e ouço Maryam a ler em voz alta para Hossein.

Apoiado nas mãos esguias e finas, Maryam tinha o seu exemplar de “Divan”, um livro que possui há mais de vinte anos, que tem vindo a anotar em persa ou inglês e ao qual acrescenta post it coloridos ou simples pedaços de papel branco onde escreve. “Porque leio outros livros sobre o poeta, tomo nota de todo o tipo de informação no meu livro. Considero Hafez mais do que um poeta; é um santo. Todos os iranianos o amam, independentemente do seu nível de educação. Foi Hafez que disse que quem tiver amor no coração nunca morrerá”, explicou-me num inglês correto. Pudesse eu perceber uma palavra, teria preferido continuar a ouvi-la falar em persa. Passadas tantas semanas sobre o nosso encontro em Shiraz, ainda me lembro da sua voz aveludada, quente, a recitar com total entrega os versos de Hafez sobre a beleza do amor, do bom temperamento e da fidelidade. Há no persa, nos seus sons aspirados, no enrolar dos “erres”, nas consoantes sibiladas e na cantilena, uma doçura que me conforta.

   

Maryam, leitora assídua, crê que não poderia viver sem livros. O estilo literário que prefere é a poesia, sobretudo a poesia sufi — uma corrente mística e contemplativa do Islão, cujos praticantes procuram, através de exercícios transmitidos por Maomé, desenvolver uma relação directa e íntima com Deus, isto é, uma harmonia absoluta com o divino. Nesta linha, é para Maryam muito fácil apontar o livro da sua vida: “Masnavi”. A obra, da autoria do persa Rumi, é considerada por muitos o trabalho mais importante da literatura sufi. Maryam diz que mudou a sua vida: “Permitiu-me ver tudo de forma diferente, ter uma visão mais positiva acerca de tudo, porque tudo tem um significado, cada incidente tem um significado belo. É um livro que recomendo a todos. Está escrito na forma de pequenas histórias que até as crianças entendem. Todas as pessoas retiram de lá algum significado.”

Entretanto, juntou-se a nós um amigo de Maryam e Hossein. Foi a primeira pessoa que, no Irão, me perguntou directamente o que eu achava da política iraniana. Foi a primeira pessoa a quem, no Irão, dei a minha opinião sincera acerca do assunto, sem medos, sem rodeios, sem auto-censura. Então, este amigo, contou-me que esteve preso um ano no seguimento dos protestos que invadiram as ruas do país em 2009 (momento a que a imprensa do ocidente chamou o “Despertar Persa”) porque o resultado das eleições presidenciais foi manipulado, dando a vitória a Mahmoud Ahmadinejad. Foi prisioneiro político, banido da faculdade, impedido de prosseguir os seus estudos por muito tempo. Mas não desistiu. Está actualmente a terminar o doutoramento em Ciência Política — apesar das represálias, apesar das suspensões —, garantiu-me que não abdicou das suas convicções políticas e que se inspira todos os dias no exemplo de Nelson Mandela e na mensagem que nos legou em “Um Longo Caminho Para a Liberdade“.  Impressionou-me muitíssimo o sorriso tranquilo deste homem, a convicção serena que exalava e as palavras que escolheu para me descrever como foi estar preso: “interessante” e “aprendizagem”.

Enquanto falávamos, escureceu. Ouvimos o muezim chamar para a última oração. À nossa volta nada mudou: o vaivém dos visitantes junto ao túmulo manteve-se, as famílias continuaram a passear pelo jardim, os amigos a conversar, as crianças num reboliço, a esplanada da casa de chá cheia de clientes. Mas eu tinha de me ir embora. Maryam contou-me que ela e Hossein visitam o jardim Mussala muitas vezes por ser um lugar que lhes consola o coração e providencia alegria para encarar o dia-a-dia. Para a tarde em que nos conhecemos, chegaram a ter outros planos. Porém, porque a vida dá voltas, os planos não se concretizaram e deram por si de novo no jardim. Emocionada com a sua extrema delicadeza, com a atenção que me dedicou e com a comunhão que se estabeleceu entre todos nós, disse-lhe que estava muito grata por tê-la conhecido. À despedida Maryam abraçou-me e assegurou: “Foi Hafez que conspirou para nos juntar”.

Sempre que recordo aquele momento — o abraço, as palavras, o tom da sua voz — sinto que o meu coração se expande, me sai do peito e se dilui com tudo o que me rodeia. À sua maneira, Maryam proporcionou-me uma experiência mística.

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