No mesmo jardim onde conheci a italiana Francesca e o francês Mathieu, em Bruxelas, fotografei o romeno Octavian. Aproveitava, também, a manhã de sol excepcional e lia as últimas páginas de “Neuromancer”, do autor canadiano William Gibson (“Neuromante”, na edição portuguesa da Gradiva esgotada há muito).
“Neuromante”, o primeiro livro de William Gibson, foi publicado em 1984 e inaugura a trilogia Sprawl, completada com “Count Zero” e “Mona Lisa Overdrive” (nunca publicados em Portugal). É um livro de ficção científica e um dos mais famosos dentro do subgénero cyberpunk, que descreve cenários futuristas, quase sempre distópicos, onde as sociedades baseadas em avanços científicos e tecnológicos revolucionários enfrentam mudanças radicais na ordem social, um acentuar do fosso entre ricos e pobres e uma degradação generalizada da qualidade de vida.
Consta que na altura em que chegou às livrarias, “Neuromante” não recebeu muita atenção dos intervenientes no negócio livreiro. Foram os leitores que, com o poder da publicidade boca-a-boca, fizeram do livro em fenómeno editorial. A sua qualidade literária e o marco que representa na história recente da ficção científica viriam a ser confirmados muito pouco depois da sua publicação, quando recebeu os três principais prémios literários dedicados a este género: o Nebula, o Hugo e o Philip K. Dick. Passados mais de trinta anos, “Neuromante” terá vendido quase sete milhões de exemplares em todo o mundo.
O personagem principal, Henry Dorsett Case, é um talentoso hacker informático e toxicodependente. Depois de ser apanhado a tentar roubar os patrões é despedido e como castigo vê o seu sistema nervoso central destruído por uma toxina, ficando assim impedido de aceder a uma rede informática global disponível no ciberespaço, uma realidade virtual chamada “matrix”. A sua sorte parece querer mudar quando conhece Molly Millions, uma mercenária que trabalha para um tal de Armitage, um fulano suspeito que propõe curar Case em troca dos seus serviços como hacker. Primeira tarefa? Atacar o sistema informático de uma grande corporação. É no decorrer dos seus trabalhos para Armitage que Case conhece Neuromante, uma forma de inteligência artificial que tem como habilidade principal copiar a mente dos seres humanos e armazená-las como memória RAM, permitindo às personalidades copiadas que cresçam e se desenvolvam numa realidade paralela.
Julgo que nunca tinha ouvido falar deste livro e se alguma vez me cruzei com “Neuromante” esqueci-o. Não sou leitora de ficção científica, nem me lembro do último livro deste género que terei lido. Talvez “A Mulher do Viajante no tempo”, em 2006? Foi, portanto, com surpresa que fiquei a saber que a palavra “ciberespaço” foi criada por William Gibson numa novela prévia — onde a define como “uma alucinação consensual criada por milhões de computadores em rede e experienciada diariamente por milhões de pessoas em todas as nações” — e que a utilização do termo se popularizou com a publicação de “Neuromante”, passando a ser comumente utilizado para designar a World Wide Web. Alguns ensaístas chegam mesmo a sugerir que a forma como William Gibson concebeu o ciberespaço e previu o futuro ajudou a dar forma à Internet tal como a conhecemos hoje.
Cory Doctorow, também ele escritor de ficção científica e citado pelo The Guardian num artigo publicado pelos trinta anos da primeira edição de “Neuromante”, considera que “o livro continua a ser uma vívida alegoria do mundo dos anos oitenta, quando as primeiras sementes do fosso global entre ricos e pobres foram plantadas e quando assistimos aos primeiros atos de rebelião tecnológica. Uma geração depois, vivemos um futuro que não é o futuro imaginado por Gibson, mas sim uma versão desse futuro, menos elegante e menos romântica, mas que ainda assim identificamos imediatamente.” Por seu turno, William Gibson brinca com o assunto e argumenta que a sua visão do futuro em “Neuromante” não foi perfeita porque não conseguiu prever o advento dos telemóveis.
Mas, ainda que sem telemóveis, não é curioso que “Neuromante” tenha sido publicado no ano que deu nome ao romance de George Orwell, onde tanta da nossa realidade atual foi também antecipada com assustadora precisão? Agora que sei o mínimo dos mínimos sobre o livro de William Gibson para poder estabelecer este paralelismo com “1984”, estou certa que Octavian, fã de ficção científica, concordaria comigo. Acerca de “Neuromante”, Octavian comentou:
“Estive um par de anos sem ler ficção científica e senti muita falta. Ouvi falar deste livro e então decidi lê-lo. No futuro que aqui se descreve toda a gente tem implantes, a tecnologia está no auge, os humanos interagem constantemente com máquinas e entram, literalmente, nos computadores, num mundo diferente que é manipulado por hackers. Há, também, uma inteligência artificial que escapa aos seus criadores e começa a manipular seres humanos. O livro levanta questões interessantes sobre a inteligência artificial e eu gosto disso. Gosto de livros que, no fim, nos fazem refletir sobre a vida em geral e sobre o caminho que leva a humanidade. Por exemplo, qual será no futuro a definição de estar vivo? A este propósito recordo todos os livros de Isaac Asimov, as suas histórias sobre robots e sobre o futuro da humanidade. Foi um visionário e é fabuloso ver como projetou o que ainda estava por acontecer!”
Entretanto, chegou uma amiga de Octavian trazendo consigo duas bebidas quentes. Sentou-se na relva connosco e a conversa entre os três derivou para assuntos do presente: o processo de integração da Roménia na União Europeia, o estigma dos ciganos e os preconceitos daí resultantes, a emigração, a eleição de Trump, o Brexit, a crise financeira e económica, o terrorismo, o drama dos refugiados, a apatia perante o sofrimento alheio. Quanto ao futuro? Bem, estava na companhia de dois jovens otimistas, portanto o tom foi de esperança, como eu gosto.
Olá! Conheci o site por indicação da Rita em seu Instagram. Que texto excelente! Aqui no Brasil, Neuromancer é muito conhecido, apesar de que como você, não tenho o hábito de ler ficção científica. E não sabia que o livro é parte de uma trilogia, nem sei se os demais livros foram publicados no Brasil também. Em uma coisa devo concordar com você, Neuromancer e 1984 foram escritos com visão futurista e se assemelham em seus propósitos. Abraço.
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Olá, Maria! Obrigada por ter passado pelo Acordo Fotográfico e por ter deixado o seu comentário. Seja bem-vinda! Tem muitos leitores para conhecer aqui no site. Espero que goste das suas histórias, dos textos e que se inspire para ler ainda mais com todos os livros e autores aqui referidos. Um abraço e até breve!
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