O convite para visitar uma amiga em Bruxelas estava feito há algum tempo, mas foi por impulso que comprei o voo na semana do último Natal. Tinha o meu primeiro trimestre de 2017 mais ou menos planeado e achava, sinceramente, que os três meses iriam ser calmos, o que me permitiria o luxo de tirar quatro ou cinco dias para passear, pôr alguns anos de conversa em dia e descobrir mais uma capital europeia.
Mal sabia eu que estava equivocada. Quase no último dia do ano chegou o convite para publicar um livro ainda no primeiro semestre de 2017 e no arranque de Janeiro, projectos de Biblioterapia que pareciam enguiçados ganharam novo elã. Entrei numa roda viva e quando dei por mim estava a dias de partir sem que tivesse sequer olhado para um mapa da capital belga. Estava preocupada com isso? Nem um pouco.
Uma das actividades em que investi mais tempo desde o início do ano foi a preparação de uma outra viagem — o regresso ao Irão, em Abril, pela Magellan Route. E é com um sorriso que encaro este paradoxo: se por um lado o trabalho como líder de viagem exige planeamento, atenção ao detalhe e o cumprimento à risca de um programa de visitas, por outro cada vez me dá mais prazer viajar sozinha deixando muita margem para o improviso. É verdade que em Bruxelas sabia poder contar com as orientações preciosas da minha anfitriã, que tinha todo um plano montado à minha espera. Mas não quis de forma nenhuma que a escapadinha me arrastasse para a escravidão que é picar o ponto naqueles lugares turisticamente obrigatórios.
A Ryanair cancelou-me o voo de ida sem justificação e perdi dois dias de viagem, o que me impediu de ir a Bruges? Tudo bem, não houve crise. Tenho pelo menos uma belíssima desculpa para voltar à Bélgica em breve. Os três dias tornaram-se curtos para visitar monumentos e museus? Sem qualquer problema! Foi da maneira que aproveitei o céu excepcionalmente azul e as temperaturas elevadas para a época, e flanei pelas ruas sem imperativos categóricos, aberta ao que fosse surgindo pelo caminho.
Preferi andar de olhos erguidos para apreciar a arquitectura dos edifícios, distinguir Arte Nova de Art Déco, vaguear por antiquários (há tantos!), ouvir as histórias do vendedor de tapetes orientais que faz negócios com o Irão e o Afaganistão há mais anos do que eu tenho de ser nascida, entrar em lojas de chocolate e livrarias, desfrutar do ambiente de cafés, restaurantes e bistrôs, ir às compras para o almoço no mercado de Domingo em Ixelles, onde bebi cerveja branca e me empanturrei de batatas fritas com mostarda a horas impróprias. Sim, apreciei as fachadas exuberantes da Praça Dourada. Sim, fui dar um olá ao pequeníssimo Manneken Pis. Sim, tive o privilégio de visitar o Parlamento Europeu. Mas tudo o resto — o Atómio incluído — ficou para outra ocasião e eu acho que foi perfeito assim.
Gostei muitíssimo de Bruxelas, uma cidade à escala humana, que se percorre facilmente a pé, de bicicleta ou de transportes públicos, jovem, culturalmente eclética, com ambientes sofisticados mas despretensiosos e onde a língua franca é, segundo me explicaram, o “bad English” (isto é, o inglês incorrectamente falado). Julgo que seria capaz de viver na capital belga (habituei-me a avaliar os lugares que visito por esta bitola algo vaga, bem sei…), uma cidade que às vezes me recordou Paris e outras vezes Amesterdão, até nos espaços verdes que a pontuam. Foi precisamente num desses espaços que passei uma manhã de sábado e foi por lá que fiz todas as fotografias de leitores que partilharei nas próximas semanas.
Em 1880 o rei Leopoldo II quis celebrar com pompa e circunstância os cinquenta anos da revolução que conduziu à independência da Bélgica (que até então tinha feito parte do Reino Unido dos Países Baixos). Encorajado pelo crescimento económico e industrial do país, o monarca sabia que esse era um pretexto para dotar Bruxelas de infraestruturas públicas que aproximassem a capital das suas congéneres europeias. Surgem parques, monumentos vários e é escolhido e preparado um recinto — nas imediações do palácio real e do centro histórico — para acolher os festejos da efeméride.
A área, com cerca de 30 hectares, passou a chamar-se Parque do Cinquentenário e foi congregando, ao longo do tempo, edifícios de relevo, nomeadamente: as Arcadas do Cinquentenário (com ares de Arco do Triunfo e Portas de Brandenburgo), o Palácio do Cinquentenário (onde funcionam os museus do Exército, da Aviação, do Automóvel e de Arte e História), a Grande Mesquita de Bruxelas e o intrigante Pavilhão das Paixões Humanas que, à luz do que sei hoje, lamento muito não ter visitado. Os seus extensos relvados transformaram-se, também, no local de eleição dos bruxelenses para a realização de eventos que reúnem pequenas multidões (festivais, concertos, manifestações, sessões de cinema ao ar livre) ou para momentos mais calmos, em família, junto ao parque infantil ou à volta de um piquenique. Há ainda quem aproveite para praticar desporto nos ringues e pistas de corrida, para passear o cão ou tão só para relaxar ao sol e ler um pouco. Foi o que fez o casal franco-italiano que veem na fotografia.
Francesca lia “The Broom of the System“, o primeiro romance de David Foster Wallace, publicado em 1987, quando o autor — menino prodígio da literatura americana — tinha apenas 24 anos. Foi-lhe vivamente aconselhado e emprestado por uma amiga com quem troca livros frequentemente. “Gosto muito de autores norte-americanos e este título também foi recomendado por Jonathan Franzen. Tenho preferência por romances sobre a América contemporânea, real, que está longe de ser ideal. Os personagens desta história são algo absurdos e há muita imaginação nestas páginas! Diria que é o romance certo para leitores que gostam de relatos realistas, mas onde despropósito e o ridículo da vida real são revelados”.
Leitora assídua, mas consciente de que poderia ler ainda mais, Francesca fez questão de me falar também de um outro livro que a marcara recentemente — “Limonov”, uma biografia romanceada escrita pelo francês Emmanuel Carrère e publicada em 2011. Segundo Francesca, a obra “explora uma realidade que vai muito para além da URSS e da Rússia, mas a mim, que fiz parte da minha formação académica naquele país, permitiu-me recordar a Rússia que conheci e estudei”.
Mathieu, por seu turno, estava a ler as primeiras páginas de um clássico da literatura francesa do século XVII do qual eu nunca tinha ouvido falar: “Les Caractères ou les Mœurs de ce Siècle” (em português “Os caracteres ou os costumes deste século”). Jean de La Bruyère, o autor, foi perceptor de jovens aristocratas na corte francesa de Luís XIV, o Rei Sol, e investiu dezassete anos na redação desta obra, a única que alguma vez publicou.
Em “Les Caractères”, La Bruyère esboça modelos — sob a forma de máximas, reflexões ou crónicas — que retratam o espírito do século XVII, nomeadamente os tiques que observava nos homens e mulheres que habitavam ou frequentavam a corte. A primeira edição da obra, publicada em 1688, contava com 420 caracteres. Mas em 1694 — depois de ter corrigido, revisto e ampliado o texto para a nona e última edição — La Bruyère tinha já delineado 1120 “retratos”.
A este propósito, disse-me Mathieu: “La Bruyère é um dos expoentes máximos da língua francesa e da fineza de espírito, a par de La Rochefoucauld. A acutilância deste ensaio é de tal ordem, que a certa altura chegou a hesitar em publicá-lo. Considero-o um bom remédio, por exemplo, para alguém que tem hoje trinta anos, entrou no mercado de trabalho há cinco ou seis, e começa a ficar desiludido com as pessoas e a vida que leva… Verá que trezentos anos depois o ensaio continua actual”.
David Foster Wallace e Jean de La Bruyère. Um romance realista sobre a sociedade americana do século XX e um ensaio filosófico sobre o carácter dos cortesãos franceses do século XVII. Separam-nos trezentos anos. Unem-se na capacidade de captar e registar o absurdo e o caricato que pautam transversalmente a vida. O absurdo e o caricato a que nenhum ser humano será jamais alheio por muitos séculos que passem.