PORQUE LI
Porque estava na estante dos meus pais e porque ambos não se cansaram de mo recomendar. Foi o último dos oito livros que li durante as férias, em Agosto.
O QUE ACHEI
“Estava na casa da ti Adelina Tamanco. Era meio da tarde e havia uma sombra que acertava mesmo nos olhos da velha. Rosa não tinha gosto em recorrer a estas artes, mas tinha necessidade. Nos primeiros tempos de estar casada, depois de uma catadupa de desgraças que não gostava de recordar, foi a mãe que lá a levou. Veio a saber-se que era uma carrada dupla de quebranto. Foi assim que ela disse: uma carrada dupla de quebranto. A muito custo, com rezas, papéis queimados e sal grosso, lá se conseguiu ver livre desse atraso. Mas não foi fácil. Quando estes maus génios se metem com uma pessoa, Deus livre.”
Não lia nada de José Luís Peixoto há muito tempo e pegar neste “Galveias” foi como voltar a casa. Voltar à casa da sua escrita, de que gosto tanto, e voltar à minha casa, que é com quem diz, às minhas origens.
Não passei parte da minha infância e adolescência numa aldeia do interior de Portugal, mas viva-a naquela que foi outrora uma pequena cidade do litoral algarvio, onde turismo e ruralidade coabitaram longamente, porque o “interior” sempre esteve a poucos minutos de carro. Aliás, o “interior” tem como ponto mais alto a Fóia que olha, orgulhosa, para o litoral cheio de si e com tiques de grandeza… O turismo e a urbanidade, aparentemente, acabaram por vencer a disputa, mas a ruralidade deixou as suas marcas profundas, nem que seja no bairro dos meus avós, nos seus primeiros habitantes, já quase todos mortos, e nos descendentes desses pioneiros. E julgo que até aqueles que nasceram e foram criados nas grandes cidades sentirão pulsar dentro de si este gene rural, porque cada bairro nada mais é do que uma aldeia, que replica formas de ser, estar e viver dos pequenos lugares campesinos. Faltará a predominância da natureza, com certeza, das terras vastas e do céu imenso; não viverão tão expostos às inclemências do clima, também; nem ao ritmo do cantar do galo, do sino da igreja e da colheita da cortiça. Mas enquanto o mundo rural exterior a cada um de nós definha lentamente, trazemos todos a sua herança no sangue.
À galeria de personagens de “Galveias” — Ramiro Chapa, Nuno Cabeça, Joana Barreta, Adelina Tamanco, Júlia Funesta, Joaquim Janeiro, Tina Palmada, Cremilde do Tarrancho, Filete e Miau, o deficiente que não controla as pulsões sexuais — não pude deixar de associar, e recordar constantemente, a galeria de gente de carne que e osso que também eu conheci, de quem ouvi contar inúmeras histórias e que é dona de um riquíssimo leque de alcunhas: a família das Gaiatas, que viviam em frente aos Mijões; o Besugo e a Besuga, que eram um casal; o Xoco e a Xoca, que eram outro; o Lipas (o meu avô), o Papiletes, o Venha-Venha, a Batata, o Ministro Sem Pasta e o Luís Maluco.
E construí muitas pontes entre as histórias das gentes da minha terra e as histórias das gentes de “Galveias”: as motas que ceifam vidas e estropiaram outras tantas, os bailes ao som de gira-discos, as desavenças entre irmãos, as disputas por causa de terras, os crimes com armas de fogo, a pobreza que obriga várias gerações a viver sob um mesmo teto, os mexericos e as vinganças, os homens com amantes e duas famílias, os machismos e preconceitos, os arremessos de “justiça” popular, os doutores e os seus filhos ineptos, as mulheres abandonadas por parirem crianças deficientes, as idas à bruxa e à missa, num oscilar entre santos milagreiros, superstições e banhos com ervas. Mas também a bravura no combate travado com a terra (e o mar!) para daí retirar o sustento, a capacidade de interpretar os sinais dos ventos e das nuvens, o sentido de honra e lealdade, os afetos toscos, mas puros, entre Homens e entre Homens e bichos.
“Galveias” foi publicado em 2014, contudo a ação do livro decorre em 1984. Começa em Janeiro, com a queda estrondosa de um objeto que vem do espaço e que empesta a aldeia com um cheiro a enxofre e deixa em todas as bocas um travo amargo, literalmente. Esse objeto é designado pel’ “a coisa sem nome” e constitui o grande mistério do romance de Peixoto. Um mistério que não tem solução nas páginas do livro, mas que os leitores arrastarão consigo para lá delas. Eu ainda penso nele, passados tantos meses. Seria uma alusão ao movimento irreversível de desertificação do interior que começava a agudizar-se em 1984? O sinal do fim de uma era? Ou uma referência à situação política de Portugal em 2014? Eu, pelo menos, há quatro anos andava de boca amargada…
Um romance que encherá as medidas dos habituais leitores de José Luís Peixoto e um excelente ponto de partida para quem ainda não conhece a sua obra. Os portugueses identificar-se-ão com muito; os estrangeiros (“Galveias” acaba de ser publicado no Japão) descobrirão um país que ainda não desapareceu completamente, se é que desaparecerá algum dia.