Já li – Caderno de Memórias Coloniais

Acordo Fotográfico - Sandra Barão Nobre - Isabela Figueiredo - Caderno de Memórias Coloniais

PORQUE LI?

Porque gostei muitíssimo do segundo livro de Isabela Figueiredo, “A Gorda”, que me ofereceu o meu pai. E porque “Caderno de Memórias Coloniais” estava à minha disposição na casa dos meus pais. Fui eu mesma que ofereci o livro ao meu pai, o ano passado, pelo seu aniversário. O meu pai é ex-combatente em Moçambique, terra natal de Isabela Figueiredo, e andou por aquelas paisagens, contrariado e de arma em punho, precisamente na altura em que Isabela construía as memórias que viria a verter neste caderno.

 O QUE ACHEI?

Os brancos iam às pretas (…) As pretas tinham a cona larga, diziam as mulheres dos brancos, ao domingo à tarde, todas em conversa íntima debaixo do cajueiro largo, com o bandulho atafulhado de camarão grelhado, enquanto os maridos saíam para dar a sua volta de homens, e as deixavam a desenferrujar a língua umas com as outras. As pretas tinham a cona larga, mas elas diziam as partes baixas ou as vergonhas ou a badalhoca. As pretas tinham a cona larga e essa era a explicação para parirem como pariam, de borco, todas viradas para o chão, onde quer que fosse, como os animais. A cona era larga. A das brancas não, era estreita, porque as brancas não eram umas cadelas fáceis, porque à cona sagrada das brancas, só lá tinha chegado o do marido, e pouco, e com dificuldade; eram muito estreitas, portanto muito sérias, e convinha que umas soubessem isso das outras.

A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos de trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá o que eram os pretos e o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta brava. Insignificantes cabrõezinhos (…) Os lerdos das ideias, lentos, com conta no Montepio, doentes dos olhos por olhar de viés (…) Tão feios, tão pobres de espírito esses portugueses que ficaram, esses portugueses de Portugal, curtidos de vinho do garrafão. Feios, sombrios, pobres, sem luz no rosto nem nas mãos. Pequenos.

Li, numa entrevista ao jornal Expresso, que Isabela Figueiredo temeu pela sua integridade física quando o seu “Caderno de Memórias Coloniais” foi publicado, nomeadamente nas apresentações públicas do livro. Os excertos que aqui partilho servem, antes de mais, para que percebam que não era apenas a reação dos portugueses “de cá” que ela temia; as suas constatações cruas e a descrição de uma certa forma de ser português também não pouparam os ex-colonos.

Isabela Figueiredo nasceu em Moçambique em 1963, filha de portugueses da zona das Caldas da Rainha, e voltou para Portugal, sozinha, após o 25 de Abril. Este “Caderno de Memórias Coloniais” é o registo das recordações dos anos vividos em África, a sua terra, e do regresso a Portugal, um lugar que lhe era totalmente estranho.

Isabela regressa a essas memórias de uma menina pré-adolescente (tinha 12 anos quando se deu o 25 de Abril), olhando-as através da lente de uma mulher madura. E então, digere tudo e percebe tudo e expele tudo. Sem pudor, sem meias palavras, sem “politicamente correto”. É um texto catártico não só para si, mas também para quem o lê, porque há emoções e situações descritas que são universais e eternas ou que, pelo menos, ainda não mudaram. Nós, os portugueses do excerto acima, por exemplo, ainda somos assim, ainda somos aquilo.

E o que é que Isabela digere? Antes de mais a relação com os pais. A mãe, contida, recatada, convencional. O pai, exuberante, confiante, vigoroso, irascível, um homem que “gostava de foder e comer”. A mãe e o pai, ambos racistas. Terá com eles uma relação sempre complexa, conflituosa, de amor e ódio, porque se apercebe das injustiças que o sistema colonial implica, porque a fere o patriarcado, porque Isabela é futuro e eles são passado. Pelo pai sente um fascínio, que roça a idolatria, porque a trata quase como igual, porque a incita a ser o que ela quiser, porque apela ao seu sentido de orgulho; mas é também ele que lhe causa as maiores desilusões quando se comporta de forma alarve para com outras mulheres, brancas ou negras, ou quando deixa à solta a sua atitude reacionária.

A autora digere, também, o despertar da sua sexualidade, a relação com o seu corpo e a consciência do impacto que o seu corpo — a pele branca, os cabelos finos e loiros, a carne firme — tem nos outros. O tema regressará em “A Gorda”, para dominar quase por completo esse romance. Depois, digere a relação entre colonos e colonizados, entre exploradores e explorados, entre brancos e negros. Isabela era só uma menina, mas viu tudo, sentiu tudo e nunca esqueceu.

“Quem, numa manhã qualquer, olhou sem filtro, sem defesa ou ataque, os olhos dos negros, enquanto furavam as paredes cruas dos prédios dos brancos, não esquece esse silêncio, esse frio fervente de ódio e miséria suja, dependência e submissão, sobrevivência e conspurcação. Não havia olhos inocentes.”

Por último, o texto exorciza a chocante descoberta da metrópole, dos seus habitantes e das suas mentalidades, da pobreza material e moral, da tacanhez, do enfezamento.

Caderno de Memórias Coloniais” é, no meu entender, um retrato vivo, lúcido e confrangedor da recente História política e social de Portugal. É uma descrição necessária e se nos olharmos olhos nos olhos ainda descobrimos contornos bem definidos deste retrato nada abonatório.

Um livro excelente, recomendável a quem não teme ver-se ao espelho.

 

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