Já li — O Naufrágio da Luz

Acordo Fotográfico - Sandra Barão Nobre - O Naufrágio da Luz - Hernán Neira

PORQUE LI?

Porque estava à mão de semear em casa dos meus pais. E porque precisava de um relato breve, depois da maratona deliciosa, mas muito exigente da saga “A Amiga Genial”.

O QUE ACHEI?

“Se fosse possível, Ameland teria ignorado o mar, mas a superfície era tão plana e, no fim de contas, tão pequena que, mesmo com a vista baixa, era impossível não ver o horizonte. A presença constante da água e a lembrança dos seus antepassados provocavam uma tentação constante de fuga. Proibiram-se inúmeras palavras, como cetáceo, navegação e fuga, baniu-se o nome dos que tinham ido, impediram-se as conversas sobre o passado e reprimiu-se qualquer desejo de liberdade. Mas era impossível negar o oceano: bastava duas pessoas encontrarem-se a sós para se voltar a falar nele. As novas autoridades impuseram a crença de que só havia bem estar e salvação na ilha e de que o mar estava repleto de males, de embarcações e de homens malignos cuja principal característica de perversidade consistia em navegar sem parar, uma vez que não pertenciam a nenhuma ilha, a terra alguma e, não contentes por errar eternamente na solidão, queriam arrastar os ilhéus para essa vida sem ponto fixo nem referências morais através do mais nefando de todos os estratagemas: a ilusão de que para além do horizonte existiam outras coisas sem ser água, de que se podia ser livre e feliz noutro sítio que não a ilha. Duas ou três gerações mais tarde, a história de Ameland tinha ficado tão banhada nas brumas do esquecimento, ou nas da imaginação, que, para um observador externo ou mesmo para alguém que tivesse nascido ali, seria impossível distinguir a realidade da ficção.”

Ameland é um banco de areia no meio de um oceano. Não sabemos exatamente onde fica, nem a que país pertence (se é que pertence a algum país…) Sabemos apenas que o lugar é remoto, que vive envolto em brumas, que é inacessível por barco porque as marés transformam as bordas arenosas num pântano movediço, e que há um punhado de gente que lá vive voluntariamente, isolada do resto do mundo, arrastando os seus dias num tempo que é só seu.

Quem nos fala deste lugar é o último faroleiro que para lá mandaram, um jovem que parte de um qualquer lugar, que deduzimos ser num qualquer continente, e que exerce supostamente autoridade sobre o banco de areia a que chamam, com presunção, “ilha”. Tudo na “ilha” está envolto em mistério, o comportamento dos ilhéus à cabeça. O jovem faroleiro resiste durante alguns tempos apesar do ambiente hostil, apaixona-se por uma jovem local — com uma história de vida tão brumosa quanto a da “ilha” e ostracizada por todos — e decide, alguns anos mais tarde, abandonar aquele lugar levando consigo a sua amada. Se o relato de Hernán Neira já é perturbador até aqui, a partir deste momento mexe ainda mais com a nossa cabeça, os nossos sentidos e as nossas emoções, porque a linha entre o delírio e realidade esbate-se por completo.

Li “O Naufrágio da Luz” no rescaldo da leitura obsessiva dos quatro volumes d’ “A Amiga Genial”. Sabia que qualquer livro que se lhes seguisse estaria em desvantagem. Talvez tenha comentado várias vezes que não estava a gostar nada do livro de Neira apenas porque tinha saudades dos personagens de Ferrante. Ou talvez não estivesse à espera que um livro tão pequeno — pouco mais de 120 páginas — continuasse a fazer vibrar os meus nervos já de si tensionados pela leitura da “saga napolitana“.

A cada página d’ “O Naufrágio da Luz” senti que me perdia no nevoeiro da censura, da coação, da mentira, da manipulação da História, da distorção dos factos e da realidade. Senti-me presa nas areias movediças daquele lugar inóspito onde vivia gente medonha, ignorante, que delegava o seu destino nas mãos de homens autoritários, violentos e labregos. Senti que a minha liberdade estava ameaçada e que sufocava. Foi a leitura que mais me tolheu em 2018…

“O Naufrágio da Luz” foi publicado em 2004 e foi, há catorze anos, interpretado como uma crítica à nossa crescente desumanização. Hoje, à luz das fake news, da contrainformação, das tentativas de saneamento da História, da vida vivida ao ritmo de tweets e alarvidades arrotadas nas redes sociais por gente com uma agenda medonha e do advento de líderes no mínimo populistas como Trump, Bolsonaro, Conte, Duterte e Orbán, sinto que “O Naufrágio da Luz” assenta que nem uma luva a esta era da pós-verdade, que chega de mãos dadas com o fantasma da ditadura.

Acabo de me dar conta, agora mesmo, do quanto apreciei este pequeno livro, afinal, e do quanto me apetece voltar a lê-lo. Infelizmente, o título está esgotado no mercado português. O exemplar que li pertence ao acervo da Biblioteca Municipal de Portimão. Talvez a biblioteca da vossa área de residência o tenha também.

Mas na atual conjuntura era mesmo bom que alguma editora voltasse a dar-lhe uma oportunidade.

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