PORQUE LI?
Coloquei “Uma Vida à Sua Frente”, de Romain Gary, na minha lista de leituras a fazer quando saiu a edição da Sextante (2010) e ouvi o editor, João Rodrigues, falar do romance. Oito anos mais tarde, foi o preço (cerca de 7 Euros) que me convenceu a comprá-lo, em francês e numa edição de bolso, durante a minha última visita a Paris, em Fevereiro deste ano, na tarde em que deambulei por livrarias do Marais.
O QUE ACHEI?
“Madame Rosa dit que la vie peut être très belle mais qu’on ne l’a pas encore vraiment trouvée et qu’en attendant il faut bien vivre. Monsieur Hamil m’a aussi dit beaucoup de bien de la vie et surtout des tapis persans.” (Pág. 128)
Madame Rosa é uma judia polaca, sobrevivente de Auschwitz, que no final da Segunda Guerra Mundial migra para Paris, cidade onde se prostitui enquanto a sua boa figura assim o permite. Quando se “reforma”, começa a cuidar das crianças de outras prostitutas, que lhe pagam uma mensalidade para que albergue, alimente e, na medida do possível, eduque os filhos. Rosa vive com essas crianças num pequeno apartamento de um bairro pobre de Paris, mas à medida que envelhece a tarefa torna-se difícil, porque lhe é cada vez mais penoso descer e subir as escadas até ao sexto andar onde habita. De todas as crianças que tem sob a sua alçada, Madame Rosa tem uma predileção — melhor, um verdadeiro amor — por Mohammed, filho de uma prostituta e de um proxeneta muçulmanos, a quem chama Momo. É ele o narrador de “La Vie Devant Soi” / “Uma Vida à Sua Frente”.
Momo é já um adolescente, mas Rosa, para o reter junto de si, mente-lhe: não só o convence que tem apenas dez anos, como o educa como se fosse judeu também. Momo, que tem recordações muito remotas da mãe e não se lembra do pai, retribui o amor de Madame Rosa e é-lhe absolutamente dedicado. Desfaz-se em atenções, ajuda no que pode em casa, lava-a, veste-a, maquilha-a, alimenta-a, cuida das outras crianças (enquanto as há…) e, sobretudo, esforça-se para garantir que, à medida que envelhece e fica senil, Madame Rosa não é confrontada com os seus piores pesadelos: os Nazis, a Assistência Social, o cancro, a morte solitária num hospital.
Embora viva quase sempre entregue a si mesmo, Momo não está totalmente só. À medida que a saúde de Madame Rosa declina, os habitantes do bairro e do prédio unem-se e esforçam-se para que os últimos dias da sua vida lhe sejam leves. Momo evita, acima de tudo, que Madame Rosa seja levada para o hospital onde certamente morreria só e apavorada. O Dr. Katz, velho médico judeu, é visita constante. Também ele tem muitas dificuldades para subir até ao sexto andar, por isso é carregado às costas de Monsieur Walloumba ou dos irmãos Zaoum, vizinhos que executam danças rituais africanas em torno de Madame Rosa para ajudar no restabelecimento da sua saúde. Madame Lola, um travesti que se prostitui, é outra vizinha que ajuda com dinheiro e comida, assim como Monsieur N’da Amédée, um proxeneta analfabeto que enriqueceu em Paris, mas esconde à família, nas cartas ditadas a Madame Rosa, a origem da sua fortuna. Personagem importante é, igualmente, Monsieur Hamil, um velho muçulmano, outrora vendedor de tapetes persa, bom amigo de Madame Rosa e que encarna a figura paternal que Momo nunca teve. Monsieur Hamil adora Victor Hugo e tem sempre consigo um livro do autor, que cita amiúde quando tece considerações melancólicas sobre a vida, o amor, o islão.
Tudo isto nos é contado com detalhe pela voz de Momo, um jovem que não sabe ao certo quem é, de onde veio, que idade tem, o que o espera quando Madame Rosa morrer. O tom da sua narrativa oscila entre o infantil e o adulto, a candura e a violência, a revolta e a delicadeza, a alegria e a tristeza. Ao mesmo tempo que é capaz de roubar, de experimentar drogas, de seduzir e manipular, Momo elabora com lucidez em torno de assuntos tão complexos e sérios como a morte assistida, a prostituição, o aborto ou o abandono dos mais velhos à sua sorte.
“La Vie Devant Soi” / “Uma Vida à Sua Frente” é um bom romance. Li-o em francês, mas deduzo que a edição portuguesa seja igualmente cativante e fácil de ler. Embora duro — nenhuma criança deveria viver o que Momo vive… —, “La Vie Devant Soi” / “Uma Vida à Sua Frente” constitui uma profunda lição de humanismo, de solidariedade, de amor entre pessoas de origens sociais, culturais e religiosas muito distintas. Há mesmo um espírito ecuménico, conciliador entre judeus, cristãos e muçulmanos que emana das suas páginas. E Momo entra para a minha galeria de personagens “meninos-quase-homens” preferidos, ao lado de Pedro Bala (Capitães da Areia), Zézé (Meu Pé de Laranja Lima), Bruno (O Rapaz do Pijama às Riscas), Holden (À Espera no Centeio) e tantos, tantos outros que esqueço, agora, injustamente.
“Je voudrais aller très loin dans un endroit plein d’autre chose et je cherche même pas a l’imaginer, pour ne pas le gâcher.“
“La Vie Devant Soi” / “Uma Vida à Sua Frente” — recomendo-o, com certeza!