Já aqui o escrevi muitas vezes e repito-o constantemente: a vida é muito irónica.
Trabalhei durante 15 anos na Rua da Restauração, no Porto. Durante 15 anos, de Segunda a Sexta-feira, à hora de almoço, circulei pela zona, entre os jardins do Palácio de Cristal, a Rua de Cedofeita, a Cordoaria, o Passeio das Virtudes e a área dos Clérigos. Fazia compras, ia ao banco, tomava café, lia ao ar livre e fotografava leitores, também.
Há três anos, quando dei o “grito do Ipiranga”, me despedi daquele trabalho e decidi que tinha chegado a altura de trabalhar para mim, se alguém me tivesse dito que as minhas rotinas profissionais continuariam a passar exatamente pela mesma zona da Invicta, ter-me-ia rido muito. E, se bem me conheço, teria rematado as gargalhadas com um “vade retro satanás!” — sem desprimor para aquela zona da baixa do Porto, que adoro, está hoje mais linda e viva que nunca e à qual volto sempre com alegria.
E foi mesmo isso que aconteceu. Ainda antes de me conseguir aguentar financeiramente com os projetos de Biblioterapia, as viagens e a escrita, comecei por trabalhar a tempo parcial numa Guest House, escassos metros acima do meu antigo posto de trabalho. Meses mais tarde, já na reta final do ano, os empreendimentos biblioterapêuticos mantiveram-me exatamente na mesma zona, entre o Centro Materno-Infantil do Norte e o Hospital de Santo António. Não é de estranhar, por isso, que continue a fotografar leitores mais ou menos nos mesmos ambientes. A semana passada, por exemplo, voltei ao Jardim das Oliveiras e fui ao encontro de um leitor que me falou de um fenómeno literário francófono que me era absolutamente desconhecido.
“Chamo-me Charles, sou belga, venho de Charleroi, estudo Direito na Universidade Livre de Bruxelas e estou de férias no Porto com a minha namorada Stéphanie”, assim se apresentou. “Normalmente, por causa dos estudos, não tenho tanta disponibilidade para ler, penso noutras coisas, tenho outras preocupações e acaba por ser nas férias que leio mais. Mas adoro ler, é algo que faço desde muito pequeno, logo não quero de todo perder este hábito. E então, assim que tenho oportunidade, volto a pegar num livro. Se no resto do ano não é tão fácil, as férias são o momento ideal: flanamos um pouco e damos ar aos livros.”
Charles lia um pequeno livro em formato de bolso com o título “Donjon de Naheulbeuk – La Couette de L’ Oubli”, uma obra humorística cujas origens remontam a 2001, quando o autor, o francês John Lang, lançou a série “Donjon de Naheulbeuk” em formato MP3. Todo o ambiente do livro e os personagens são inspirados em jogos de tabuleiro — há um anão, um elfo, um ogre, uma feiticeira, um ladrão e um bárbaro que entram num torreão para roubar uma certa relíquia. “A série áudio era muito cómica, um conjunto de piadas que se ouviam no Youtube ou em plataformas semelhantes. Com o passar do tempo, transformou-se num verdadeiro fenómeno e o autor acabou por adaptar a série áudio ao formato livro (a partir da terceira temporada) e, mais tarde, fez também álbuns de banda desenhada. Este pequeno livro estava na minha biblioteca há muito tempo, foi-me oferecido num aniversário há cerca de dez anos. Nunca o tinha lido, nem sequer aberto. Há uns dias voltei a ouvir a série MP3, que tenho no telemóvel, e tive vontade de abrir o livro e começar a ler. Estou a gostar, tenho-me fartado de rir!”
O género Fantasia Medieval é de longe o que Charles mais gosta e mais lê. “Talvez porque os primeiros livros que li foram os do Harry Potter e do Eragon, este permaneceu até hoje o meu estilo literário preferido. É provável que tenha de amadurecer um pouco mais para começar a ler livros de outro género. Julgo que com este tipo de literatura não aprendemos verdadeiramente nada de novo. Vivemos, isso sim, coisas que não podemos viver na vida real, como as aventuras. Assimilamos certos valores, como a coragem, é um facto. Mas nada muito intelectual, digamos… Ainda que com o tempo venhamos a descobrir mensagens nas entrelinhas que possam ajudar-nos no dia-a-dia. A verdade é que reli os livros do Harry Potter há pouco tempo e há coisas que vi com olhos de adulto, que não via quando era miúdo. A mensagem é totalmente diferente daquela que me foi possível compreender anos antes. É preciso que se diga que as aprendizagens que fazemos quando lemos estão também ligadas ao nosso estado de espírito. Acontece-me, por vezes, não ter vontade nenhuma de ler. Assim como me acontece ficar triste por achar que já não tenho tanto tempo para ler como noutras fases da minha vida.”
Se estiverem interessados em ouvir os MP3 com as duas primeiras temporadas de “Donjon de Naheulbeuk”, deixo-vos aqui o link. Podem, também, espreitar aqui os livros que foram publicados a partir de 2008, isto é, a partir da terceira temporada da série.