(Dear Anna, if you ever read this post please send me an email to acordofotografico@gmail.com. I’ve lost your email and can’t send you the pictures I promised… Thanks!)
Auschwitz foi sempre o objetivo.
Não sei quando o defini. Não me lembro sequer do momento em que percebi o que era e o que significava Auschwitz. Talvez numa conversa em casa, com os meus pais. Talvez numa aula de História, na escola. Talvez ao ver um filme de Hollywood no cinema ou um documentário da BBC na televisão. Talvez na ressaca da leitura do “Diário de Anne Frank”. Talvez, até, no dia em que fui a Natzweiler-Struthof, o único campo de concentração erguido pelos nazis em solo francês, na Alsácia. Foi no início dos anos 90 do século passado e eu teria uns 16 anos. Ali, estima-se que tenham morrido cerca de 22 mil pessoas. Talvez neste dia me tenham falado do complexo de campos de concentração de Auschwitz, na Polónia. Talvez tenham mencionado a dimensão colossal — 40 km2 — e o número inconcebível: 1 milhão e 300 mil mortos, 90% dos quais judeus.
Só sei que Auschwitz foi sempre o objetivo.
Não queria passar por esta vida sem ver com os meus olhos. Sabia que não me bastavam as conversas, as aulas de História, os documentários, os filmes, os livros, os museus dedicados ao Holocausto ou o “pequeno” Natzweiler-Struthof, em França. Era preciso ir a Auschwitz. Era preciso pôr lá os pés e ver em primeira mão, numa nova tentativa para compreender o ininteligível.
Apenas recentemente — há cerca de 12 anos — a Cracóvia surgiu neste cenário, quando um ex-namorado me explicou que se tinha isolado naquela cidade, durante um Inverno, para terminar o que viria a ser o seu primeiro romance. Perante a minha estranheza, discorreu sobre aquele lugar e as palavras que escolheu para me descrever a segunda maior cidade polaca ficaram gravadas na minha memória. Ao perceber que Auschwitz ficava perto, aliei o objetivo antigo ao desejo novo de visitar a Cracóvia também.
Olhadas de perto, as dores de crescimento de uma cidade são tramadas. Quem chega hoje à delicada e aprumada Cracóvia e observa o esplendor do centro histórico impecavelmente recuperado e mantido — que passou a integrar a lista de lugares Património da Humanidade da UNESCO em 1978 — consegue imaginar os avanços, as conquistas, os anos áureos. Mas dificilmente descortina os recuos, as derrotas, os banhos de sangue.
Diz a lenda que a cidade de Cracóvia foi fundada, ali pelo século VII, por um senhor chamado Krakus, que derrotou um dragão e se instalou sobre a sua gruta com vista para o Vístula, o maior rio polaco. Contudo, só em 965 surge num documento uma primeira referência à cidade, descrita como um notável entreposto comercial. Em 1038, Cracóvia é elevada a capital do Reino da Polónia (e será, a partir de 1569, também capital da Comunidade Polaco-Lituana, à época um dos maiores países da Europa). Constroem-se os primeiros grandes edifícios — igrejas, catedrais, basílicas, o castelo de Wawel e a praça central —, arrasados pelos mongóis em duas invasões (1241 e 1259) e reerguidos pelos cracovianos, um sintoma óbvio de resiliência. Uma terceira invasão mongol é repelida graças à construção de uma muralha maciça e respetivo fosso (que subsistiram até ao século XIX). Em 1364, Casimiro III, o Grande, funda aquela que é, ainda hoje, uma das instituições de ensino superior mais antigas da Europa, a Universidade Jaguelónica, que marcará de forma determinante e para sempre o carácter de Cracóvia.
Por esta altura, a cidade já integra a Liga Hanseática — uma aliança de cidades mercantis da Europa do Norte e do Báltico — e a par dos intelectuais e cientistas que frequentam a universidade, entre os quais Nicolau Copérnico, Cracóvia atrai toda a espécie de homens de negócios, comerciantes, artesãos e artistas. É pelas suas mãos, e pelas mãos de governantes como Casimiro IV, Sigismundo I e Sigismundo II, que a cidade vive um longo período de prosperidade, entre os séculos XV e XVI. Aposta-se em grandes projetos de arquitetura, expandem-se as muralhas, instala-se uma imprensa, e é fundido o famoso sino de bronze da Catedral de Wawel. Floresce, também, a comunidade judaica que, embora expulsa do centro da cidade, é autorizada a negociar na praça central. Os judeus alojam-se no bairro de Kazimierz (assim batizado pelo próprio Rei Casimiro III), erguem sinagogas e assistem à chegada de mais judeus vindos da Boémia.
A fase de esplendor termina quando o Rei Sigismundo II morre sem deixar descendência. A coroa passa, primeiro, para as mãos dos franceses e depois por uma sucessão de monarcas estrangeiros, até à invasão da Comunidade Polaco-Lituana pelos suecos, que coincide com uma epidemia de peste bubónica. A morte de 20 mil cracovianos acentua o declínio da cidade e a capital do reino é transferida para Varsóvia em 1596. A medida não evita, porém, que toda a Comunidade Polaco-Lituana comece a desintegrar-se: revoltas, guerras e partilhas do território entre a Rússia, a Prússia e a Áustria apagam o país do mapa. Napoleão tenta restabelecê-lo em 1807, com a criação do Ducado de Varsóvia, mas após a sua derrota, Rússia, Prússia, Áustria e Reino Unido restabelecem as monarquias absolutistas na Europa, reorganizam as fronteiras do continente e a cidade de Cracóvia adquire um novo estatuto, em 1815: o de Cidade Livre da Cracóvia. Embora fosse um protetorado das potências vencedoras, Cracóvia volta a ser o centro da vida cultural e política dos polacos, tanto que em 1846 um grupo de nacionalistas tenta uma revolta independentista, que é esmagada pelos austríacos. A Cidade Livre da Cracóvia é incorporada no Império Austríaco e passa a Grão Ducado da Cracóvia até 1918, quando termina a Primeira Guerra Mundial e se estabelece a República da Polónia. Nos escassos vinte anos de paz que se seguem, a resiliente Cracóvia reemerge como centro académico e cultural polaco, apostando-se sobretudo na abertura de novas universidades e escolas especializadas. A cidade torna-se, também, um importante polo cultural e de negócios para a comunidade judaica. Às portas da invasão alemã, em 1939, a cidade contava com cerca de 70 mil judeus e 120 sinagogas.
Quando ocuparam a Cracóvia, os Nazis procuraram desde logo germanizar a cidade: alteraram a sua toponímia, demoliram monumentos que evocavam os feitos da nação polaca, fecharam a Universidade Jaguelónica e reescreveram a História da cidade com recurso à propaganda. Depois, fizeram uma levantamento e identificação de todos os judeus, obrigaram-nos a pagar impostos extra, submeteram-nos a trabalhos forçados e confinaram-nos a guetos exíguos, onde morreram à fome e de doenças provocadas pelo meio insalubre. Dos guetos, os judeus da Cracóvia seguiram para os campos de concentração, para se juntarem aos cerca de 6 milhões de judeus da Europa que morreram às mãos dos nazis. Mas não foram os únicos perseguidos. Polacos de outros credos religiosos e políticos, foram igualmente expulsos das suas casas e viram os seus negócios expropriados. Membros do Partido Comunista, da Resistência Polaca, do Governo Polaco no Exílio, professores universitários, outros intelectuais, artistas, ciganos e homossexuais foram também perseguidos e muitos morreram nos mesmos campos de concentração.
Com a chegada dos soldados soviéticos, que libertaram a Cracóvia do jugo nazi em 1945, o cenário não melhorou… Se por um lado a cidade foi poupada a uma destruição massiva, por outro os soviéticos violaram jovens e mulheres e continuaram a perseguição aos membros do Governo Polaco no Exílio. Ao instalar-se um estado socialista na Polónia, a comunidade académica e intelectual da Cracóvia ficou sob os holofotes da polícia e as universidades foram privadas da sua autonomia e liberdade de expressão. A instalação da maior fábrica de aço do país é considerada mais uma tentativa de transformar Cracóvia numa cidade cada vez mais proletária e menos intelectual. Até que no final da década de 70 do século XX entram em cena duas figuras polacas determinantes na transição democrática do país, uma delas intimamente ligada à história de Cracóvia: Karol Wojtyla, eleito Papa (João Paulo II) em Outubro de 1978; e Lech Walesa, líder da federação sindical Solidariedade.
Karol Wojtyla já tinha dado mostras do seu espírito rebelde durante a ocupação nazi de Cracóvia, onde vivia e estudava. Quando a Universidade Jaguelónica foi fechada pelos alemães, passou a frequentar o seminário clandestino do palácio arcebispal de Cracóvia. Anos mais tarde, Wojtyla visita a sua terra natal, na sua segunda viagem ao estrangeiro enquanto Papa. Foi a primeira vez na História que um Papa visitou um país comunista. Encontra a Polónia esmagada pela cortina de ferro, pela falta de liberdade, mergulhada numa crise económica e termina com a seguintes palavras o discurso feito no coração de Varsóvia, a 2 de Julho de 1979, frente a milhares de conterrâneos: “E eu choro — eu que sou um filho da terra da Polónia e que sou também o Papa João Paulo II —, eu choro de todos os abismos deste milénio, eu choro na vigília de Pentecostes: deixe o seu Espírito descer! Deixe o seu Espírito descer! E renovai a face da terra. A face desta terra.” Esta exortação à mudança é considerada a primeira pedra do efeito dominó que varreu a União Soviética e acabou por levar à sua queda. Inspirados pelo Papa, os polacos uniram-se e começaram a fazer frente ao regime comunista. Em Agosto de 1980 surge o Solidariedade, que em menos de um ano angaria mais de 10 milhões de membros, e começa uma vaga de greves e levantamentos populares que forçaram o governo a negociar com o sindicato. Em 1990 realizam-se, por fim, as primeiras eleições livres polacas e Lech Walesa foi eleito Presidente da (Terceira) República da Polónia. Seguiu-se, em 2004, a adesão à União Europeia.
Duvido que tanto um como o outro — Wojtyla e Walesa — se orgulhem por aí além do rumo político que o país leva hoje em dia, nomeadamente no que diz respeito à atitude perante os migrantes. Mas isso são outros quinhentos, que não cabem aqui no Acordo Fotográfico ou, pelo menos, que não cabem neste post que já vai longo… O que eu eu posso dizer-vos aqui, porém, é que sendo a Cracóvia o único pedaço da Polónia que pisei e explorei até ao momento, a primeira impressão que me deixou do país foi muito positiva.
A Cracóvia do século XXI — para alguns “a cidade mais polaca da Polónia” — tem hoje cerca de 750 mil habitantes e mantém o título conquistado há centenas de anos: o de capital cultural e intelectual da nação. Por um lado, a existência de muitas universidades alimenta uma grande comunidade artística, intelectual, boémia; por outro, as autoridades têm apostado continuamente numa forte cultura museológica — acho surpreendente, por exemplo, que haja na cidade um Museu de Arte e Tecnologia Japonesa! — assim como em infraestruturas culturais: teatros, outras salas de espetáculos ou pavilhões multiusos. Isto permite a Cracóvia receber durante todo o ano festivais, espetáculos, exposições que exploram um leque vastíssimo de temáticas, da música à pintura, da fotografia à indústria, da gastronomia ao cinema ou ao desporto.
O baixo custo de vida em Cracóvia e os baixos salários auferidos pelos polacos, são fatores de atração para os jovens, e de facto, Cracóvia é eminentemente jovem; mas também para as empresas estrangeiras que têm investido na cidade. Embora a indústria do aço continue a ser a maior empregadora da região, mais de 20 multinacionais instalaram-se nos últimos anos em Cracóvia para investir na banca, na produção de medicamentos, no desenvolvimento de software e no turismo, claro! — uma indústria que me pareceu muito bem organizada, assente na simpatia e cordialidade, na diversidade, eficiência e seriedade dos serviços prestados, no bom gosto, na limpeza e no extremo cuidado com a preservação e promoção do património cultural, sendo o conjunto de monumentos o que mais facilmente impressiona quem chega para visitar a cidade.
É através deles que se revisita grande parte da História que vos contei, a História da resistente e elegante Cracóvia, desde a Gruta do Dragão (que os miúdos adoram visitar, no recinto do Castelo Wawel), à maior praça medieval da Europa; da gótica Basília de Santa Maria à Igreja barroca de S. Pedro e S. Paulo; do jardim circular implantado sobre o traçado da antiga muralha, uma linda faixa verde que abraça todo o centro histórico da cidade, ao museu da Fábrica Schindler; da Praça dos Heróis do Gueto ao pavilhão Wyspiański, um moderníssimo edifício do século XXI. Tudo isto banhado pelas águas do Vístula, onde se passeiam barcos para turistas e cujas margens extensas e relvadas se transformam num solário frequentado por visitantes e habitantes.
No 1º de Maio, as temperaturas na cidade rondavam uns surpreendentes 30 graus (enquanto, ao que parece, chovia no Porto…). Terminadas as visitas que me ocuparam desde manhã até meio da tarde, dirigi-me para as margens do rio, animadas por uma feira onde se vendiam comida e artesanato polaco. Fiz umas pequenas compras e sentei-me, depois, à sombra de uma árvore, para observar quem passava ou quem, como eu, relaxava sobre a relva. Cracóvia é uma das 28 Cidades Literárias da UNESCO, mas encontrei menos gente a ler do que esperava. Só mesmo quando me levantei e abandonei a zona do Vístula para me dirigir ao bairro judeu, avistei uma leitora solitária.
Anna nasceu na Ucrânia, país para onde os pais, polacos, foram trabalhar como médicos voluntários num hospital. Regressou à Polónia para estudar no liceu e na faculdade, que terminou em Cracóvia, a cidade onde vive até hoje. “Apaixonei-me totalmente pela cidade!”, disse-me num inglês fluente e corretíssimo. “É maravilhosa. Tenho conhecido aqui gente incrível, tenho feito amigos de todo o mundo. Este é um lugar muito inspirador, é definitivamente a capital da cultura na Polónia, e não Varsóvia. Aqui há eventos culturais a acontecer a todo o momento. Por exemplo, agora decorre o festival Off Camera e há sessões de cinema gratuitas ao ar livre nos terraços dos hotéis, nos barcos que cruzam o Vístula e mesmo aqui nas margens do rio onde montaram um ecrã gigante e puseram espreguiçadeiras sobre a relva. Os filmes em exibição são originários de diferentes países, é cinema independente de muito boa qualidade. Ainda na sexta-feira passada vi um filme norueguês. Era bom, mas algo deprimente como me parecem ser todos os filmes escandinavos. Curiosamente, entretanto, comecei a ler um livro de um autor escandinavo.”
O livro era a edição polaca d’ “O Boneco de Neve”, do norueguês Joe Nesbø, um thriller que conta a história de um assassino em série e da equipa que procura detê-lo. O criminoso mata apenas mulheres, sempre que começa a nevar. No local do crime deixa um boneco de neve. “A semana passada estava a sentir-me um bocadinho em baixo e então fui a uma livraria para comprar um livro. Normalmente vou à biblioteca. Vivo pertíssimo daqui e há uma biblioteca na minha rua à qual vou com frequência. Mas entre a semana passada e esta, por causa dos feriados, a biblioteca esteve fechada e então decidi comprar um livro para ter alguma coisa para ler. E escolhi algo completamente diferente. Não sou o tipo de pessoa que lê policiais, mas este livro é muito interessante.”
A preferência de Anna vai para a Literatura de Viagem e para obras de carácter mais jornalístico — uma das suas autoras favoritas é a Oriana Fallaci, a jornalista e correspondente de guerra italiana, famosa pelas suas entrevistas a líderes políticos mundiais, entre os anos 60 e 80 do século passado. Diz ela que são esse género de livros que a ajudam a desenvolver a forma como raciocina, a procurar ideias para a sua própria vida, a encontrar inspiração para melhorar enquanto pessoa. “Leio muito e adoro ler. Sou muito feliz quando leio. Ajuda-me a esquecer assuntos que por vezes me entristecem ou me stressam. Tenho um trabalho muito exigente na área do turismo, que envolve milhares de turistas, milhares de reservas e quantias avultadas de dinheiro. Então, quando leio, esqueço isso tudo.”
E Auschwitz, perguntam vocês? Auschwitz é um marco na minha passagem por esta vida. Uma experiência que nunca estará digerida. Um dia talvez consiga articular um texto sobre o que senti, sobre como me observei a mim mesma naquele lugar e sobre como observei os outros, com as suas lágrimas, os seus silêncios ou as inexplicáveis selfies com largos sorrisos junto a guaritas e quilómetros de arame farpado. Às vezes, de certos lugares, trago pedras. Tenho pedras de praias em Portugal, Marrocos, Cabo Verde ou São Tomé e Príncipe. Tenho pedras do Kruger Park, na África do Sul. Tenho pedras do pátio onde Nelson Mandela enterrou parte das suas memórias quando estava preso em Robben Island. Tenho uma pedra do Caminho de Santiago. De Auschwitz não consegui trazer nada. Quase nem trouxe fotografias. Fiz dois registos tímidos à chegada, um do portão infame e outro do céu sobre a minha cabeça. O resto? Ai, o resto…