PORQUE LI?
A vida tem caminhos misteriosos.
Há pouco mais de um ano, uma das minhas reuniões de trabalho com um elemento da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, no Porto, é interrompida por um telefonema. Quando desliga a chamada, a pessoa com quem eu reunia explica que está a tratar da apresentação de uma biografia de Manuel Teixeira Gomes recentemente publicada e da qual eu ainda não tinha ouvido falar. Sou de Portimão, estudei na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, vivi parte da minha infância e adolescência num prédio que pertence aos seus descendentes, prédio esse que se situa em frente à casa onde Manuel Teixeira Gomes nasceu e viveu, e tive o enorme privilégio de ter entrevistado uma das suas filhas, Ana Rosa, no programa de rádio que dinamizava quando andava no liceu. Quis, obviamente, saber quem tinha escrito a biografia. A resposta arrancou-me um sorriso largo, porque o autor, José Alberto Quaresma, tinha sido meu professor de História no 9.º ano e pertence ao círculo de conhecimentos — posso mesmo dizer de amizades — da minha família. Umas semanas mais tarde, em Janeiro, dei por mim a participar na apresentação do livro no Porto, sessão durante a qual li em voz alta excertos do livro. Prometi a mim mesma, e ao autor, que leria a obra no decorrer de 2017. A promessa foi cumprida dentro do prazo e sinto-me feliz por ter este livro portentoso no meu currículo de leituras.
O QUE ACHEI?
“A hora da partida, talvez na existência o mais delicioso, esquisito momento, onde tudo é alacridade, gozo, esperança… Fugir a todas as prisões, mesmo às mais doces, supor que um instante basta para borrar todo o usado cenário da vida actual e que outra vida começa, enredada de incertezas, sim, mas pejada de larguíssimas promessas, de inquietadoras visões, de frutuosas quimeras, nada que se compare a esse momento de alvorada, tanto mais incitante quanto mais a miúdo repetido, a cujo feiticeiro a alma se dilata ilimitadamente.”
A extraordinária vida de Manuel Teixeira Gomes tinha, mais cedo ou mais tarde, de dar um livro (assim como deu um filme, “Zeus”, realizado por Paulo Filipe Monteiro) e esse livro chegou, nos finais de 2016, na forma de uma magnífica biografia. José Alberto Quaresma, o autor, afirma que Manuel Teixeira Gomes não o larga há quarenta anos, uma relação longa que não podia ter outro desfecho senão este. Oito anos de pesquisa e milhares de documentos consultados depois, temos finalmente uma obra que faz jus à figura ímpar que ainda hoje, passados quase 160 anos sobre o seu nascimento, é Manuel Teixeira Gomes.
São 485 páginas que se leem como um romance! O texto intercala a voz do autor e a do biografado através de excertos das suas novelas, dos seus ensaios, dos documentos oficiais que redigiu enquanto diplomata e Presidente da República, e sobretudo, das largas centenas de cartas que foi trocando com amigos e familiares ao longo da vida. E é assim, a dois tempos, que vamos acompanhando o percurso de Manuel Teixeira Gomes, um esteta, homem inteligente, sensível e hedonista, que nunca quis terminar o curso de medicina, mas muito cedo se revelou escritor, inspirado pelas viagens, a música, a boémia e as mulheres. A necessidade de se sustentar financeiramente levou-o a dedicar-se ao negócio da família no comércio de frutos secos; o negócio levou-o a viajar pelas grandes cidades europeias do século XIX e a frequentar as suas elites; a sua personalidade politizada, reta, culta, elegante, sedutora e de fácil socialização abriu-lhe as portas da diplomacia e por fim as da Presidência da República.
O trabalho meticuloso de José Alberto Quaresma conferiu um fio condutor aos dados avulsos que eu tinha acerca da vida de Manuel Teixeira Gomes. Mas teve acima de tudo o mérito de enriquecer profusamente o meu imaginário com detalhes riquíssimos sobre a minha cidade, Portimão, na viragem do século XIX para o século XX: o urbanismo, a paisagem, a política, os valores, códigos e rituais da sociedade. Estruturou, primeiro, um cenário do que era o Algarve naquela época, mas também do que eram Portugal e a Europa.
No entanto, o que mais me impressionou ao ler esta biografia foi a minha estranha identificação com Manuel Teixeira Gomes, uma sensação amarga e doce. Como posso eu, uma mulher do século XXI, ter encontrado tanto em comum com um homem do século XIX que, ainda por cima, nem sempre tratou bem as mulheres da sua vida? O excerto que encabeça este texto é, dos muitos textos que já li sobre partir em viagem, aquele que melhor descreve os meus sentimentos nessas ocasiões, assim como o excerto que se segue define exatamente o que me vai na alma enquanto viajo:
“(…) os museus, as igrejas, os monumentos, abrem-se como outras tantas portas para o paraíso; o espectáculo das ruas nunca me embasbacou e surpreendeu como agora; olho para o céu, para o mar, para as montanhas, para a paisagem, com a encantada curiosidade de um ressuscitado (…) e repito, invariavelmente, ao fim de cada dia: ‘este já ninguém mo tira’.”
Identifiquei-me com a constante necessidade de partir, de viajar para se sentir vivo e livre; com o imenso prazer da leitura e da escrita; com a recusa em deificar o trabalho mas, uma vez assumida a responsabilidade, a capacidade de se dedicar à tarefa com brio, profissionalismo e sucesso; por fim, com a coragem (ou o egoísmo?) de mandar tudo às urtigas, abandonar Portugal — a mulher, as filhas, os amigos — com apenas uma mala e viver até ao fim dos seus dias como um seminómada, despojado de quase tudo, nas margens do Mediterrâneo. Quantas vezes já não me ocorreu este delírio romântico?
“Manuel Teixeira Gomes – Biografia” é um livro que recomendo a todos os que gostam de ler sobre vidas reais fora do comum e aprender lições valiosas graças aos trajetos de personagens que foram de carne e osso, feitos de muitas qualidades e outros tantos defeitos, como qualquer um de nós.