PORQUE LI?
Decidi não abandonar a ficção durante as férias de Verão. Depois de relido “O Principezinho” voltei às prateleiras onde estão os livros por ler e dei uma segunda oportunidade ao romance de Lygia Fagundes Telles, “Verão no Aquário“que me foi oferecido em 2011 e que na altura não consegui ler por tê-lo achado entediante. Hoje custa-me acreditar que tenha sido capaz de tamanha injustiça e falta de sensibilidade. Ainda bem que mudamos.
O QUE ACHEI?
“Amanhã, titia, amanhã começo uma vida nova, hoje não dá mais tempo.” (Raíza, na pág. 69)
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Um romance publicado em 1963, escrito num estilo poético e cristalino, onde se narra uma história de sufoco, tédio e estagnação. Julgo que é esta dualidade que faz de “Verão no Aquário” um texto especial, porque embora seja Verão no decorrer da história e as palavras de Lygia Fagundes Telles exalem luz, é Inverno dentro de quase todos os personagens. Assim como é Inverno no Brasil, um país na eminência de mergulhar numa ditadura militar. E embora hoje as ditaduras (brasileira e portuguesa) sejam coisa do passado, a leitura do romance foi muito inquietante, porque o clima de indecisão e constante adiamento que rege a vida de alguns, e que Lygia Fagundes Telles tão bem retrata, mantém-se atualíssimo.
Raíza é a jovem em torno da qual tudo gira nesta história. Pianista frustrada, ganha algum dinheiro revendo as traduções da prima Marfa — trabalho que ela detesta — e procrastina uma tomada de decisão quanto ao rumo a dar à sua vida, apesar do vazio pungente que traz dentro de si. Tenta colmatá-lo em vão, buscando amor juntos dos homens com quem se relaciona, todos tão ou mais perdidos e inconsequentes que ela, alguns particularmente irritantes de tão fúteis.
A protagonista vive na nostalgia dos tempos em que o pai era vivo e todos moravam — tios, tias e prima incluídos — numa casa de família, herdada dos avós, que está prestes a ser vendida devido ao declínio financeiro. Foi por isso que se mudou para um apartamento com a mãe, escritora de sucesso, perfeccionista, intelectual, bela e, no entender da filha, inacessível. A senhora passa os dias fechada no seu escritório, onde escreve e recebe a visita regular de André, um jovem soturno e atormentado, aspirante a padre. Raíza, cujo pai alcoólico morreu cedo de mais, suspeita que a mãe está envolvida com o jovem André (que tem idade para ser seu filho), alimenta ciúmes sérios em relação à mãe (ou algo semelhante a um Complexo de Electra) e uma paixão caprichosa por André. Os diálogos entre mãe e filha são frios, acusatórios, irónicos e feitos de subentendidos. No apartamento habitam também uma tia solteira, que mal sai do quarto onde passa os dias a costurar e a beber chá, e uma empregada. Marfa, órfã de mãe e com o pai (tio de Raíza) internado num hospício, vive numa residência católica, é companhia constante de Raíza e parece, também ela, levar uma vida imponderada.
É, portanto, neste contexto de declínio, desorientação e estagnação que Raíza vive um Verão sufocante, de temperaturas elevadas, fértil em fantasias e planos para o futuro que tece nas horas de canícula, fechada no seu quarto penumbroso, mas que parece incapaz de pôr em marcha. E arrasta-nos a nós, leitores, para o um pântano que nos tolhe também. Não foram poucas as vezes que me apeteceu entrar no livro, pegá-la pelos ombros e abaná-la até a arrancar daquele torpor, afastá-la daqueles homens, da nostalgia, dos sonhos estranhos que a assombram e forçá-la a abandonar o aquário onde se refugiou e adia a vida.
Querem saber se Raíza é capaz de reagir e mudar o rumo dos acontecimentos? Terão de ler “Verão no Aquário”, um romance que me conquistou pelo estilo da prosa, pela grande qualidade da escrita e pelos sentimentos mistos de simpatia e frieza que nutri pelos personagens. Foi o meu primeiro livro de Lygia Fagundes Telles; não será com certeza o último.
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“— Deve ser boa a vida de peixe no aquário — murmurei.
Deve ser fácil. Aí ficam eles dia e noite, sem se preocupar com nada, há sempre alguém para lhes dar de comer, trocar a água… Uma vida fácil, sem dúvida. Mas não boa. Não se esqueça de que eles vivem dentro de um palmo de água quando há um mar lá adiante.
— No mar seriam devorados por um peixe maior, mãezinha.
— Mas pelo menos lutariam. E nesse aquário não há luta, filha. Nesse aquário não há vida.”
(Raíza e a mãe, na pág. 119)