Martina, no Louisiana

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Gosto de estar atenta às ironias da vida. Mesmo as mais amargas conseguem, por vezes, arrancar-me uma gargalhada. Não é a primeira vez que aqui escrevo sobre os episódios irónicos que tenho vivido a propósito do Acordo Fotográfico. O último aconteceu-me em Copenhaga e não é de todo dramático, é quase nada, mas tem piada: estava já no aeroporto pronta para regressar a Portugal quando me apercebi que a única leitora dinamarquesa que aqui consta foi fotografada em Phnom Penh, no Cambodja. Porque na Dinamarca, onde estive uma semana em Abril deste ano, só fotografei leitores de outras nacionalidades.

Trinta e cinco quilómetros a norte de Copenhaga, em Humlebæk, fica o museu Louisiana, situado na margem do Øresund, o estreito que separa a Dinamarca da Suécia. Chega-se lá numa curta viagem de comboio a partir do centro da capital. Neste museu de arte moderna, o mais visitado da Dinamarca e um dos mais conceituados a nível mundial, é exposta a extensa colecção da instituição — com peças de artistas nacionais e internacionais, produzidas desde os anos 40 do século passado até aos dias de hoje — e são apresentadas exposições temporárias com trabalhos de artistas de todo o mundo.

O Lousiana abriu as suas portas pela primeira vez em 1958 e deve parte da sua fama ao projecto arquitectónico, considerado um dos mais importantes trabalhos da arquitectura modernista dinamarquesa. Com uma estrutura horizontal discreta, o edifício está de tal forma integrado na paisagem que ao passearmos nos jardins, junto ao canal, mal damos pela sua presença. No interior, salas com enormes janelas servem para uma pausa entre áreas de exposição necessariamente mais sombrias. E o impacto que tem a vista magnífica sobre os jardins, o Øresund e a Suécia é amplificado pelo contraste entre a escuridão anterior e a súbita claridade.

Apesar do céu carregado e da constante ameaça de chuva no dia em que o visitei, a prioridade dada à luz natural faz do conjunto do Louisiana – edifício, jardim e paisagem envolvente — um lugar diáfano, calmo, leve, nunca frio, sempre aconchegante. Ali, com todos os sentidos em alerta, tive em primeira mão uma lição sobre estética escandinava. E sobre o seu romantismo, também: o museu adoptou o nome da casa de campo que ainda hoje existe na propriedade, uma casa construída por Alexander Brun, que se casou três vezes; todas as esposas se chamavam Louise.

À hora de almoço fiz uma pausa para comer as sandes trazidas de casa: cavala fumada, tomate cereja e mostrada de Dijon em pão integral com sementes. Ainda lhes sinto o sabor. Sentei-me numa escadaria que só pode ter sido pensada para isto: pausas, momentos de contemplação, banhos de sol. Nas minhas costas estava o restaurante do museu cheio de clientes, aos meus pés, parte do relvado do jardim a acabar-se no mar e no horizonte, à minha frente, Malmö, na Suécia, possível de assinalar com precisão graças ao Turning Torso, o arranha-céus desenhado por Santiago Calatrava. Dois ou três metros à minha direita, também sentada na escadaria, estava a Martina, que lia.

A Martina é sueca, estudante de belas artes, e estava a viajar de carro para Colónia, na Alemanha, com amigos. Era a primeira vez que visitava a Dinamarca. Tinham feito uma pausa em Humlebæk para visitar o Louisiana e ela aproveitara, também, para começar a ler “A Incrível Viagem do Faquir Que Ficou Fechado Num Armário do Ikea”. O livro do autor franco-espanhol Romain Puértolas foi um fenómeno de vendas em França quando foi lançado, em Outubro de 2013. Relata as aventuras rocambolescas de Ajatashatru Larash Patel um pouco por toda a Europa e, sempre com sentido de humor, põe o dedo numa das feridas bem abertas do velho continente: a questão dos clandestinos.

“Achei a sinopse engraçada e como estava a precisar de algo divertido para ler acabei por trazê-lo na mochila. Já percebi que o livro é algo louco, mas isso é bom”, disse-me. “As minhas leituras têm altos e baixos”, comentou, a propósito da sua relação com os livros. “Leio tanto quanto posso porque adoro ler, é uma forma de abanar as coisas, em vez de ver televisão, e gosto de fazer parte das histórias”.

Foram dois os livros que me apontou como particularmente marcantes no seu percurso de leitora: “What’s Eating Gilbert Grape”, de Peter Hedges, um romance sarcástico sobre uma família disfuncional de uma pequena cidade do Iowa, nos Estados Unidos da América, que leva uma vida enfadonha e ensombrada pelo suicídio do patriarca; e “The Journey”, de Brandon Bays, um livro que se insere no movimento new age e onde a autora relata como se curou de um cancro no útero recorrendo à medicina alternativa, à programação neurolinguística e ao poder curativo que a mente pode exercer sobre o corpo. “Tem uma forte componente espiritual. Essa parte espiritual é algo de que gosto muito e que também procuro nos livros”.

Já no fim da nossa conversa ocorreu-me dizer-lhe que sou portuguesa e perguntei-lhe se já tinha tido a oportunidade de visitar Portugal. Disse-me que não e, muito naturalmente, acrescentou: “É curioso, todos os anos visito uma médium que já me disse mais do que uma vez que tenho de ir a Portugal. Parece que lá vou sentir-me em casa”.

Caso decida seguir o conselho, ficou feito o convite para me visitar.

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