Após um intervalo em 2015 tive, no passado mês de Fevereiro, a oportunidade de voltar às Correntes d’Escritas, o festival literário que acontece anualmente na Póvoa de Varzim. Foi uma alegria rever amigos, ex-colegas de trabalho, autores, editores, jornalistas e tantas outras pessoas que entregam grande parte das suas vidas à causa dos livros e da Literatura. Um regresso que, graças à Penguin Random House e à Companhia das Letras Portugal, ganhou contornos especiais, uma vez que pude conversar demoradamente com dois dos seus autores: Julián Fuks e Afonso Cruz.
Com estas conversas não quis, nem nunca poderia querer, ir pelo caminho que os jornalistas das letras tomam com sabedoria, quanto mais não fosse porque ainda não tinha lido os romances mais recentes de ambos. Optei, portanto, por fazer aquilo que faço com os leitores anónimos que vou conhecendo por aí — perguntei ao Julián e ao Afonso que livros estavam a ler.
Julián Fuks, escritor brasileiro nascido em S. Paulo em 1981, estava a poucos dias de partir para Maputo para se encontrar com Mia Couto, o que, admitiu sorrindo, ditou a leitura do momento: “O mal de ser escritor é que muitas vezes a gente tem essa leitura guiada, a gente não se consegue tornar totalmente independente, ler livremente o tempo todo. A boa parte do tempo eu estou lendo coisas que as circunstâncias me impelem a ler”.
E as circunstâncias levaram-no até “O Último Voo do Flamingo”, um romance que lhe permitiu “contactar com esse universo fantasioso, ao mesmo tempo que ideal, um universo bem incrível. Eu nunca fui para Moçambique e sei muito pouco da história de Moçambique, então esse contacto com a história de um país a partir desse registo mítico que ele (Mia Couto) propõe, para mim tem sido uma experiência bem forte”.
De Mia Couto, Fuks já conhecia outros títulos. A leitura de “Terra Sonâmbula”, por exemplo, aconteceu ainda na faculdade, mas voltou ao livro mais tarde. Salienta, a esse propósito, que “reler um livro é sempre ler um livro completamente diferente, é apontar para muitos outros sentidos que a gente não percebeu que estavam ali, mas é também dialogar com outras questões que estão presentes para nós”.
Embora na casa dos seus pais, ambos psicanalistas, sempre tenha havido muitos livros, Julián Fuks explica que por serem de um tipo muito específico e nada literário, não podia tirá-los da estante e lê-los por sua conta. E acrescenta: “Os livros eram objetos um tanto solenes, inalcançáveis, inapreensíveis que, no entanto, exerciam um forte poder de atração sobre mim. Depois de um tempo eu fui “dessolenizando” esses objetos, compreendendo que esses livros podiam ser devassados, que podiam ser explorados e que eu encontraria muita coisa com sentido ali. Muita coisa sem sentido também, muita coisa incompreensível e inapreensível, mas em grande medida que ali se revelavam questões, que assim se revelavam coisas e que ali fundamentalmente o mundo se ampliava, o mundo se multiplicava em muitas outras realidades, o mundo se tornava muito mais interessante a partir dessas leituras”.
Julián Fuks recusa, no entanto, o título de leitor precoce. “Eu segui de maneira geral a trilha que nos é proposta por um certo ensino de literatura, lendo livros infantis quando era criança, lendo livros de adolescentes quando era adolescente e em algum momento assumindo as minhas escolhas e passando a ler um tipo de literatura que me agrada mais”.
Nessa trilha, Jorge Luis Borges assumiu um papel marcante. Foi, aliás, com base na “mitificação que Borges faz da cegueira”, que Fuks escreveu “História de Literatura e Cegueira”, livro finalista do Prémio Jabuti e do Prémio Portugal Telecom em 2007. “A Resistência”, o seu romance mais recente, também foi beber ao legado do autor argentino e às “problematizações que ele faz sobre a literatura, a literatura auto-referente, que fala sobre si mesma, que se autocrítica, se explora até ao limite”. Tudo isto, diz Julián Fuks, foi muito marcante para o escritor em que se tornou. “Esse tipo de reflexão sobre o próprio fazer literário é uma coisa que me atrai muito e que permanece mesmo quando eu faço um livro mais referencial”.
Mas não só de Borges se fez a formação literária de Fuks. Juan José Saer, outro autor argentino, e a sua “construção rigorosa de linguagem, uma produção que não tem a preocupação da fruição e do prazer da leitura, às vezes leva à resistência da leitura, à provocação ao leitor, do tipo de livro que não te permite acesso fácil, que te provoca de outras maneiras que não só o prazer da leitura” foi também destacado, assim como Fernando Pessoa, ao qual Julián Fuks diz ter-se devotado quase religiosamente numa fase da sua vida.
Pedi-lhe, então, um conselho para aqueles que querem ler mais, mas de alguma forma parecem nunca conseguir adquirir ou aprofundar esse hábito. Fuks recomenda que se encare a leitura de forma menos cerimoniosa, menos obrigatória: “Eu sinto que muitas vezes as pessoas encaram com uma certa solenidade o ato de ler. Pressupõem condições muito especiais para a leitura. Então dizem: eu não leio mais porque não tenho tempo suficiente, não tenho silêncio suficiente, não tenho tranquilidade suficiente para isso. E enquanto isso estão lendo outras coisas, porque todo mundo lê: estão lendo notícias incansavelmente nos seus computadores, celulares, etc. Eu sinto que é preciso “dessolenizar” a leitura de literatura também, compreender que se pode ler em qualquer lugar, em qualquer circunstância por quanto tempo houver disponível: em pé, sentado no ônibus, no carro. Aonde quer que seja é possível se dedicar pelo menos um pouco a esse mundo. E não por uma questão de necessidade, porque às vezes a gente coloca a leitura como uma obrigação: é preciso ler para se instruir, é preciso ler para saber. Eu não gosto desse lugar da obrigatoriedade em que se coloca a leitura. Para mim é muito mais ler porque o mundo se torna muito mais interessante, as situações se enriquecem”.
Como prova disso, o autor partilha um episódio que viveu em Guadalajara, no México. A sua participação na feira do livro implicava a deslocação a uma escola e só no dia da visita, depois de ter acordado particularmente cedo, percebeu que a viagem de carro para lá chegar demoraria três horas. Fuks recorda: “A princípio eu falei: puxa, mas, eu vou ficar três horas num carro? Eu estava envolvido com a feira, queria continuar naquela situação de diálogo, de conhecer pessoas, de conversar. E lamentei por um instante.” Mas depois, o carro começou a atravessar um outro estado próximo de Guadalajara e o motorista fez um comentário que mudou tudo: aquela era a planície descrita por Juan Julfo em “Pedro Páramo” e “A Planície em Chamas”.
“E eu comecei a olhar essa paisagem ao meu redor e a reconhecer tudo aquilo que eu conhecia só dos livros”, relembra Fucks com emoção. “E isso transformou completamente aquela viagem que era sem interesse, que a princípio não me aportava nada, que era uma planícies vazia. De repente se tornou uma planície cheia de histórias e cheia de vida, mítica em suma. E aquela viagem acabou sendo, talvez, o que eu mais me lembro da feira do livro de Guadalajara: atravessar a planície do Rulfo. A leitura ressignifica o mundo e enriquece aquilo que parece uma planície desolada. Aquilo que parece vazio e sem interesse algum, quando há literatura, se transforma em outra coisa muito mais viva e muito mais rica”.
Aos que se sentem tocados por este argumento poderosíssimo para ler mais, sugiro: porque não começar pelo romance mais recente de Julián Fuks? Chama-se “A Resistência” e está editado pela Companhia das Letras Portugal. Eu terminei de lê-lo há dias e percebi ontem que ainda andava com ele dentro da mala com que saio de casa. Resisto a separar-me d’ “A Resistência”. É tão bom, que o aperto num abraço.
Identifico-me BASTANTE com as palavras de Júlian Fuks. Muito bom!
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