Que sabia eu sobre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte antes de lá ir pela primeira vez? Julgo que tudo aquilo que uma cultura geral razoável me permitia saber, mais uma mão cheia de referências provenientes dos media, da música, do cinema, da literatura e que, dou-me agora conta disso, se alicerçaram em memórias e afectos remotos.

Podia contar-vos que as minhas primeiras referências remontam aos tempos em que aprendi que os Celtas também habitaram Portugal, andaria eu no quinto ou sexto ano de escolaridade. Mas tenho de recuar mais, até 1975, teria eu na melhor das hipóteses três anos, quando estreou o filme “Barry Lyndon”, realizado por Stanley Kubrik. Sei que com três anos é impossível que me lembre dessa época, quanto mais do filme e do que este retratava, mas recordo-me dos anos posteriores e da marca que “Barry Lyndon” e a sua banda sonora deixaram nos meus pais e nas pessoas que então lhes eram mais próximas, vivíamos nós em Paris. Anos mais tarde era apenas uma adolescente quando aluguei a cassete num videoclube de Portimão e vi “Barry Lyndon” pela primeira vez, num desses longos verões dos anos oitenta. Algo que me pareceu muito antigo foi despertado — como se o trouxesse gravado no corpo, porém esquecido —, ao ouvir as primeiras notas do violino tocado pelos Chieftains no tema “Women of Ireland”. Penso que foi aí, com esse violino e a flauta e a harpa e a gaita de fole, que começou o meu namoro com a Irlanda.

Ainda de França trouxe as imagens a preto e branco dos atentados do IRA que passavam na televisão. Na minha cabeça de miúda que tudo simplificava, essas imagens falavam apenas da injustiça praticada pelos mais fortes, da repressão dos mais fracos e da revolta, sentimentos a que se juntou uma impressão de pobreza entranhada quando aprendi na escola o que foi a Grande Fome de meados do século XIX, a fome que matou cerca de um milhão de irlandeses e obrigou outros tantos a emigrar para os EUA e para o Canadá. O conflito na Irlanda do Norte — The Troubles — fez depois parte do currículo das minhas aulas de inglês no ensino secundário. Foi então que li o romance “Cal”, de Bernard MacLaverty, onde se conta a história de um jovem católico que se vê envolvido no assassinato de um polícia britânico, ficando enredado nas teias do IRA, das quais não consegue mais escapar. Uma vez lido e debatido o livro com os meus colegas de turma, vimos o filme e às imagens sombrias que a minha memória reteve juntou-se a delicada banda sonora composta por Mark Knopfler, um LP que se ouvia em minha casa havia algum tempo. Aliás, um dos temas, “Father and Son”, foi durante anos a música com que o meu pai abria o seu programa semanal na Rádio Portimão e ainda hoje não posso deixar de ouvir esta faixa sem me emocionar, porque me remete para os serões passados a ouvi-lo na companhia da minha mãe, enquanto me tricotava uma nova camisola de lã.


Foi assim, sobretudo ao sabor das artes, que fui descortinando o que significa ser irlandês. Ajudaram-me os filmes, muitos protagonizados por Daniel Day Lewis (O Meu Pé Esquerdo/1989; Em Nome do Pai/1993; O Lutador/1997); as músicas de Van Morrison, U2, The Pogues, The Cranberries e aquele sucesso incontornável da Sinéad O’Connor; os quadros de Francis Bacon, na exposição de Serralves, em 2003; a literatura, desde “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde, ao aclamado “O Mar”, de John Banville”. E foi ao sabor, também, dos acontecimentos político, económicos e sociais: a esperança trazida pelos Acordos de Sexta-feira Santa, em 1998 (e o sorriso de Gerry Adams, líder do braço político do IRA, visto com regularidade na televisão); o rugido do Tigre Celta, com a sua baixa de impostos sobre as empresas e a chegada das grandes multinacionais americanas; o voo fulgurante da Ryanair; a emigração de tantos portuguesas e cidadãos de outras nacionalidades que encontraram na grande ilha o trabalho e a prosperidade que os seus países não souberam proporcionar. Um progresso que não debelou, contudo, o obscurantismo chocante alimentado pela ortodoxia católica, conivente com crimes hediondos contra cerca de trinta mil mulheres nos Asilos de Madalena, cúmplice de outros milhares de abusos sexuais cometidos pelo clero irlandês, defensora da proibição do aborto que vigorou até ao referendo de 2018.



Esta(s) era(m) a(s) Irlanda(s) que eu conhecia na teoria. Experimentá-la(s) na prática, pisá-la(s) e percorrê-la(s), ainda que apenas no curto eixo entre Dublin e Belfast, foi algo que adiei enquanto tive disponibilidade financeira para descobrir zonas mais remotas do globo, assim como adiei quase tudo o que há para visitar mais perto de Portugal. De 2015 para cá, porém, com a minha mudança de vida profissional e a dedicação à Biblioterapia, as únicas grandes viagens que fiz — ao Irão e a Israel/Palestina — foram em trabalho, como líder dos grupos de viajantes da Magellan Route. Todas as outras viagens, suportadas por mim, tiveram de ser mais curtas e forçosamente mais baratas, valendo-me a enorme generosidade dos amigos maravilhosos espalhados pela Europa, que me oferecem uma cama para dormir, para além de refeições e companhia na medida das suas possibilidades.


Foi, portanto, nestas condições que rumei a Dublin nos primeiros dias de Julho de 2019 para, no decurso de uma semana excepcionalmente quente, caminhar durante horas (uma média de 15 quilómetros por dia) entre todos os pontos que quis visitar, desfrutar dos parques para descansar, ler e apanhar sol (em Dublin há que fazer como os dubliners), explorar os principais monumentos, museus e outros lugares de interesse — que incrível foi passear sobre a Calçada do Gigante e que choque foi descobrir que em Belfast há um muro hediondo que separa católicos e protestantes — e entrar num pub ao fim do dia para brindar com uma Guinness à vida, a tudo o que vira pela primeira vez e a tudo o que tinha aprendido.


Sobre as mesas desses pubs e sobre a mesa do café da livraria Dubray, na Grafton Street, onde fui várias vezes, colocava os livros que ia comprando e começava a folhear. Porque, como não podia deixar de ser, esta minha visita tinha também um propósito literário. A capital da República da Irlanda é uma das trinta e nove cidades que a UNESCO classifica como “Literárias” (para mim a sétima Cidade Literária visitada depois de Barcelona, Durban, Cracóvia, Milão, Montevideu e Óbidos). A par disto, metade dos seis Prémios Nobel entregues a cidadãos irlandeses foram para distinguir escritores dublinenses — Samuel Beckett, George Bernard Shaw e W. B. Yeats — e muito dificilmente se percorrem as ruas da cidade sem tropeçar em referências a James Joyce, Oscar Wilde, Jonathan Swift ou Bram Stocker, todos eles filhos de Dublin.


Depois, esta é sem sombra de dúvida uma cidade de livrarias e de alfarrabistas, alguns bem-afamados como a Ulysses Rare Books, que exala aquele cheiro a livro antigo e folhas amarelas que adoro. E é também a cidade que alberga quatro espaços dedicados a livros que me emocionaram particularmente: a Biblioteca Marsh, aberta em 1707 e uma das mais antigas bibliotecas públicas da Europa; a sala de leitura da Biblioteca Nacional da Irlanda, inaugurada em 1890, onde me sentei para ler “The Story of Ireland” durante um par de horas; a Chester Beatty Library, um museu-biblioteca inaugurado em 1950, que acolhe uma das mais preciosas e abrangentes colecções de livros antigos do mundo e que entrou para o topo da minha lista de museus preferidos; e a biblioteca do Trinity College cuja nave central, finalizada em 1732, acolhe cerca de duzentos mil livros.




O comprimento da nave, o tecto abobadado, as estantes altas dos rés-do-chão e do primeiro andar ocupadas por milhares de livros, a luz natural que entra pelas grandes janelas e incide sobre os vários tons de castanho das lombadas e das madeiras que forram o edifício, soalho incluído, compõem um dos efeitos mais dramáticos e belos que alguma vez testemunhei no mundo dos livros que vou conhecendo por aí. Tinha planeado sentar-me num dos bancos disponíveis para tomar notas no bloco que arrasto comigo para qualquer lado e ler um pouco. Tinha também formulado o desejo de poder fotografar um leitor ou uma leitora naquele espaço icónico. Temi que isso não fosse acontecer porque embora a sala estivesse ocupada por centenas de pessoas, parar para ler não parecia estar nos planos de alguém. Até que Asper veio sentar-se ao meu lado.



Alta, de cabelo encaracolado e arruivada, Aspen pareceu-me encaixar no estereótipo da mulher irlandesa. E sim, admito que pensei na Princesa Merida do desenho animado “Brave”, que tem o carimbo da Disney, embora essa heroína seja escocesa. Mas Aspen tinha vindo, afinal, do outro lado do Atlântico. Nascida e criada em Missoula, no estado norte-americano de Montana, fazia a sua primeira visita à Irlanda, para um périplo de duas semanas no encalce dos cenários e dos ambientes d’ “As Crónicas de Gelo e Fogo”, de George R. R. Martin. Trouxera consigo o segundo volume da saga, que tinha terminado de ler já durante as férias, e quando a fotografei estava nas primeiras páginas de “Tormenta de Espadas”, o terceiro volume.


Aspen diz-se fã de Literatura Fantástica e aponta os dois volumes de “Oathbringer”, de Brandon Sanderson, como os seus livros preferidos, tendo mesmo conseguido conhecer o autor e ter os seus exemplares autografados por ele. “Em Oathbringer, há uma personagem, uma mulher, que é artista como eu quero ser porque estudo artes na Universidade. Identifiquei-me muito com essa mulher, que no livro vive dificuldades muito semelhantes às minhas e que descobre ter em si as forças de que precisava para ultrapassar todos os seus problemas”, explicou-me Asper.

Foi a deixa perfeita para lhe falar de Biblioterapia e sublinhar aquilo que Asper tinha experimentado, isto é, o efeito terapêutico daquela leitura em particular. Assim aconteceu, logo na minha primeira manhã em Dublin, um excelente presságio do que viria a ser uma semana perfeita e feliz.