Começo a perder a conta às cidades gigantescas onde já estive. Claro que, quando comparadas às “grandes” cidades portuguesas, a maior parte das cidades além-fronteira suplantam a nossa realidade. Mas se as há que são ligeiramente maiores que Lisboa ou o Porto, há depois as cidades que são enormes e por fim as que são gigantescas, de um tamanho por vezes difícil de apreender.
Talvez por isso sinta esta necessidade de subir a um ponto bem alto, para testemunhar esse tamanho inapreensível, para comprovar que, de facto, algumas destas cidades se estendem para além daquilo que os meus olhos conseguem abarcar: Tóquio, vista do último andar de uma das torres da municipalidade; Xangai, vista do topo do World Financial Center; Nova Iorque, estendida para além do Empire State Building; São Paulo e a miríade infinita de torres vistas do cimo do Edifício Itália; o Rio de Janeiro visto a partir do Corcovado; Teerão e a imensidão ocre e branca que se observa do alto da Torre Milad e que só o smog, por encurtar as vistas a sul, parece tornar menor.
É inevitável sentir-me pequena perante estas cidades. E é inevitável sentir espanto por funcionarem de facto, qual organismo. Umas melhor, outras pior, mas funcionam. Mesmo quando a primeira impressão é a de que o caos impera e que o grau de disfunção é hostil a qualquer forma de vida, lá das alturas percebemos que na cidade gigantesca tudo se vais acomodando e fluindo. E que a sua gente até a acha bonita, lhe chama de casa e sente saudades suas quando parte.
Normalmente, ao visitar um lugar gosto de me perguntar se seria capaz de lá viver. São poucos os que merecem um rotundo não — Joanesburgo, Caracas, Bombaim, São Paulo, Pequim — e são muitos os que merecem um convicto sim: Sydney, Quioto, Nova Iorque, Buenos Aires ou quase todas as capitais europeias que conheço. Já acerca de Teerão — capital do milenar Irão desde 1796, que dá guarida a quase 9 milhões de almas —, o meu coração oscila: apenas regressada da cidade onde estive sozinha uma semana e onde a opressão sufoca, dir-vos-ia claramente que não; mas à medida que os meses passam, acontece-me por vezes admitir um muito remoto talvez no que diz respeito a passar lá uma temporada (curta, vá…).
A Teerão que eu conheci não é uma cidade bonita. É verdade que não me demorei na zona norte, no sopé da colossal cordilheira Alburz, onde o ar é mais fresco, mais limpo, as avenidas mais largas, a habitação de maior qualidade e onde vive a gente rica que, ouvi dizer, organiza as festas mais loucas (com álcool a rodos…) e protagoniza uma revolução sexual underground. Mas essa é uma pequena parte da enorme cidade. A grande porção encontra-se no centro — conservador, caótico, altamente poluído, com edifícios de arquitectura e construção duvidosa — e na imensidão a sul, zonas compostas por bairros onde vivem a classe média, os remediados e os pobres.
A Teerão que eu conheci não é uma cidade bonita, mas o que ela tem de bom para oferecer é fácil de identificar: a montanha ali tão perto, a segurança, a limpeza das ruas, a extrema afabilidade das pessoas, a presença refrescante de milhares de jovens, criança e bebés, a eficiência do metro reluzente, os belíssimos parques, os monumentos, o Museu Nacional das Joias, o bulício do grande bazar e uma certa cena vanguardista patente nas várias formas de expressão artística, nos hijab que cobrem cada vez menos cabelo e nos manteaux cada vez mais justos e cintados. Gosto da forma subtil, elegante e digna com que os mais novos testam os limites da República Islâmica.
E a Teerão que eu conheci possui aquilo que eu ainda não tinha visto em qualquer outra parte do mundo: parte de uma enorme e central avenida da cidade dedicada à venda de livros. Sim, num troço dessa avenida, de seu nome Enghelab, onde fica a Universidade de Teerão, vi uma das maiores concentrações de livros por metro quadrado da minha vida, livros que se vendem expostos nos passeios, amontoados nos assentos de motas, nas malas escancaradas de carros, em livrarias modernas de montras amplas e em galerias comerciais que albergam apenas livrarias.
Manuais escolares e universitários, livros científicos de todas as disciplinas, clássicos da literatura universal e obras de referência em inglês, bestsellers internacionais traduzidos para Parse (o idioma Persa moderno), com destaque para o “Mein Kampf” de Hitler. Não me enganei: a palavra bestseller aplica-se perfeitamente porque este é, de facto, um dos livros mais vendidos no Irão, seguindo a tendência que se observa em todo o Médio Oriente. Preciso de vos recordar que o Estado iraniano nega em absoluto que o Holocausto tenha acontecido? Há, portanto, em Enghelab milhares de títulos ao dispor dos iranianos. Isto apesar da censura feroz.
Quis o acaso que tivesse reservado alojamento numa das transversais desta rua fora do comum. Por isso, todos os dias, na minha caminhada entre o hostel e a estação de metro da Praça Enghelab, deambulei por estes espaços para observar livros, livreiros e clientes. Recordo o colorido das capas, o ruído do trânsito compacto, a algaraviada incompreensível dos transeuntes, o som cristalino do santur tocado por uma jovem sentada no chão, o aroma das grandes chamuças de batata vendidas num boteco de esquina e o olhar pestanudo do Omid, que lia num beco sem saída onde se instalaram os alfarrabistas.
Omid é de Kermanshah, uma cidade com 800 mil habitantes, de profunda influência Curda, que fica 525 quilómetros a oeste de Teerão, já perto da fronteira com o Iraque. Veio para Teerão para fazer os estudos superiores em Sociologia e quando lhe perguntei se gostava de viver nesta cidade, que a mim me parecia caótica, sorriu e respondeu-me apenas que a capital é um bom lugar para estudar. Tinha aproveitado os bancos e a sombra do beco dos alfarrabistas para folhear os livros que tinha acabado de comprar: “The Hegel Dictionary”, de Glenn Alexander Magee e a edição em Parse de um título de Michael Inwood, cujo original em inglês não consigo identificar com exactidão (talvez seja “Hegel – Arguments of the Philosophers”).
Disse-me Omid, sempre sorrindo e esforçando-se por falar o seu melhor inglês: “Tenho em casa outro dicionário de Hegel numa edição em Parse. Estou a ler a obra deste filósofo, mas preciso dos dicionários para entender melhor os seus conceitos mais importantes. Gosto de Filosofia e leio Filosofia porque sem ela a Sociologia não é nada.”
Mais fotos da avenida Enghelab, aqui.