Manuel e o bom soldado Švejk

Acordo Fotográfico - Sandra Barão Nobre - O Bom Soldado Švejk - Jaroslav Hašek - Tinta da China - Coleção Ricardo Araújo Pereira - 1

Quinta-feira à tarde. Dia de regressar ao voluntariado no Hospital de Santo António, no Porto, depois da pausa para as festas do final do ano. Há muito que não fotografo gente a ler porque ultimamente, quando saio de casa, ando a correr de um lado para o outro, com o tempo cronometrado. Mas não desisto de levar a câmara fotográfica comigo, não vá aparecer uma leitora ou um leitor que tenha o dom de me fazer parar.

Uma breve passagem pelo Centro Comercial Bombarda para uma compra na Organii — a minha luta encarniçada contra o plástico descartável tornou-me consumidora de champô em barra desde o início 2018 — acaba por me levar ao encontro do Manuel, um jovem estudante de Filosofia rendido aos encantos d’ “O Bom Soldado Švejk”. E que bom foi dar-me ao luxo de parar por um quarto de hora para conversar com ele.

Normalmente estou sempre com um livro que não tenha a ver com os estudos. Às vezes não leio tanto, outras vezes leio muito. Depende. E leio um bocado à sorte. Este livro estava nas prateleiras da biblioteca da minha faculdade, onde podemos mexer à vontade. Não conhecia nem o autor (Jaroslav Hašek), nem o livro. Mas conheço o Ricardo Araújo Pereira, que é o autor da coleção, e confiei.

Abro parênteses para fazer notar o quanto é importante os livros estarem ao alcance de qualquer um, em casa ou nas bibliotecas, e o quanto a recomendação por parte de um leitor — neste caso, Ricardo Araújo Pereira, mas poderia ser um familiar ou um amigo — pode ter impacto no percurso de um leitor menos experiente. Dar o exemplo (frequentar livrarias e bibliotecas, ler ostensivamente, falar de livros) e apontar caminhos possíveis (recomendar leituras, autores ou géneros literários) é uma forma simples, mas altamente eficaz para formar novos leitores.

Estou a achar muita piada a este livro”, continuou Manuel. “Pelo que li sobre o autor, ele esteve na Primeira Guerra Mundial e participou especificamente nas batalhas em que o Švejk participa. Švejk é muito caricato, um anti-herói que analisa de forma bastante idiota as coisas graves que se vão passando. Toda a violência, a tortura e a morte são apresentadas de forma cómica, mas sem perderem a seriedade. Fica claro que o autor é contra a guerra e acha a violência ridícula, principalmente porque tanto o personagem principal como todos os outros, desde os generais até ao último soldado, estão na guerra sem saber porquê. Neste caso, na frente de batalha há checos contra russos, mas ninguém sabe porque se matam uns aos outros e tudo acaba por ser muito ridículo. Nunca me tinha deparado com um personagem como o bom soldado Švejk, que chega a ser considerado pelos seus superiores um imbecil oficial e que se vai passeando pela guerra. Até onde eu li ele ainda nem chegou à frente da batalha. Esteve preso, depois foi internado num manicómio, esteve a servir um sacerdote e agora está numa viagem interminável, de Budapeste até à frente de batalha, por causa das burocracias e da desorganização!”

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Segundo Manuel, na casa onde cresceu sempre houve muitos livros. Os seus pais insistiam muito para que lesse, mas ele mostrou-se avesso. Até que um dia, por volta dos seus 16 ou 17 anos, pegou num desses livros que havia em casa e adorou a leitura. Tratava-se de “Capitães da Areia”, de Jorge Amado. Entusiasmado, foi na Internet que começou a pesquisar sobre Literatura e essas divagações levaram-no às inúmeras listas que definem rankings dos melhores escritores e escritoras. Assim descobriu Tolstoi e foi pelas mãos do autor russo que Manuel começou a ler para nunca mais parar.

“Ultimamente o autor a que tenho dedicado mais tempo tem sido Italo Calvino. O primeiro livro dele que li foi “As cidades invisíveis”, que estava na coleção RTP a um bom preço. Fiquei absolutamente fascinado! Primeiro porque senti que estavam ali muitas coisas sobre as quais eu já tinha pensado, mas nunca tinha conseguido verbalizar ou escrever. Depois porque consegue, em textos muito pequeninos, fazer reflexões profundas, algumas ainda nem as entendi totalmente. Por isso é um livro ao qual regresso constantemente, por exemplo se aconteceu alguma coisa no meu dia que me fez lembrar um determinado excerto.”

Claramente leitor de romances, Manuel afirma que o entretenimento é a principal razão que o leva a ler — quando não tem nada para fazer, em vez de ir para a Internet ou ver televisão, como fariam os seus amigos, lê. Explica que só assim lhe foi possível adquirir um gosto cada vez maior pela língua portuguesa e perceber tudo o que é possível fazer com ela. “Quem tem uma vida em que só conversa ou escreve apenas nos exames, acaba por não ter essa noção. Pelo menos, eu não tinha”, admite. Porém, aponta ainda outra grande razão para continuar a ler:

“Penso que compreendo muito melhor tudo o que tenha a ver com o sofrimento humano, graças à humanidade que alguns autores conseguem conferir às suas personagens. A ler, vivo coisas que espero nunca vir a viver na realidade. Mas acredito que essa experiência me torna mais sensível em relação ao sofrimento dos outros, principalmente se for um tipo de sofrimento sobre o qual já li.”

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5 thoughts on “Manuel e o bom soldado Švejk

  1. Descobri o seu blog através da Prova Oral, que ouvi há uma ou duas semanas atrás.Lá, falou no livro “um livreiro em Paris” que fui a correr comprar e estou a gostar, apesar de não ter muito tempo e demasiado cansaço para ler.

    Ando a readquirir o hábito de ler, eu leitora que devorava sofregamente livros e, de repente, perdi a vontade. ela tem vindo aos poucos e a sua exposição na Prova Oral veio reforçar a vontade.

    Fiquei com muita vontade de ler as Cidades invisíveis de que fala no seu post. Já tomei nota, será o próximo.

    Obrigada pelas partilhas.

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    • Cara Alice,

      Muito obrigada pela sua mensagem, que é muito importante para mim. Gostava que os visitantes do Acordo Fotográfico reagissem mais ao que vou partilhando por aqui, mas infelizmente isso é raro…

      Fico feliz por saber que está a ler e a gostar d’ “O Livreiro de Paris”. Se me disser que voltou a adquirir o hábito de ler por causa desse livro, a minha ida à Prova Oral fica plenamente justificada!

      Como refere que tem pouco tempo para ler e anda cansada, sugiro que espreite estas duas listas com recomendações de bons pequenos livros. Li-os todos e posso advogar pela qualidade dos mesmo:

      https://abiblioterapeuta.com/2018/12/10/12-pequenos-bons-livros/
      https://abiblioterapeuta.com/2016/05/31/50-pequenos-bons-livros/

      No Acordo Fotográfico encontra centenas de recomendações e leituras por parte dos leitores que fotografo desde 2011 e, também, textos sobre leituras que fiz entre 2016 e 2018. Entretanto, transferi esse tipo de conteúdos para o site https://abiblioterapeuta.com/.

      De novo muito obrigada pela sua mensagem e boas leituras. Não desista! O cérebro pode demorar a habituar-se de novo à leitura regular e comportar-se como um músculo preguiçoso quando volta ao ginásio — primeiro resiste e sofre com dores, mas depois torna-se mais forte e redescobre o enorme prazer do exercício de ler, que é maravilhoso, benéfico e insubstituível.

      Até breve,
      Sandra

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      • Sandra,

        O seu site está adicionado aos blogs que costumo ir espreitando. Também já tinha dado uma vista de olhos em todos os livros que vão recomendando.

        Na minha perspectiva, não terá caído em saco roto a sua ida à Prova Oral. Acho a biblioterapia uma ideia fantástica. Pelos livros virei muitas dores de alma. As vezes era os livros os meus únicos amigos.

        Hei-de vir dar lhe feedback da leitura d’o livreiro de Paris.

        Quanto às suas sugestões vou avalia-las com muito carinho.

        E preciso de uma opinião para um livro que gostaria de oferecer a alguém, que não conheço o suficiente para lhe destacar os gostos, mas que me tem mudado alguns aspectos da vida. Principalmente em questão a saúde. Um livro pode ser uma oferta valiosa, se bem escolhido e com uma bonita dedicatória. Que livro se pode oferecer a um médico, que como se sabe deve ter tudo e possivelmente conhecer muitos livros.
        Beijinhos

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      • Cara Alice,

        Tive o enorme privilégio de assistir à apresentação deste livro na Ordem dos Médicos, no Porto, e quando li o seu comentário foi neste título que pensei de imediato: https://www.wook.pt/livro/a-morte-e-um-dia-que-vale-a-pena-viver-ana-claudia-quintana-arantes/22785640?a_aid=4f0adabd12f9c

        O título, embora poético, pode parecer algo chocante, porque a morte continua a ser assunto tabu. Mas garanto-lhe que o espírito da obra é do mais humano e belo que há.

        Beijinhos,
        Sandra

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      • Olá Sandra,

        Ontem andei a pesquisar e também bati com os olhos neste livro. Embora a morte me assuste agradou – me o título.
        Espero que o seu conteúdo seja fantástico porque gostaria de oferecê-lo a alguém muito especial.

        Obrigada pela sua sugestão.

        Espero em breve conseguir que tenha mais visitas por aqui.

        Na era das tecnologias temos de as pôr ao serviço das coisas boas que podemos partilhar.

        Beijinho e bom fim – de – semana.

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