Ryan, na Shakespeare and Company

Nasci em França e passei a minha primeira infância em Boulogne-Billancourt, às portas de Paris. Foi lá que aprendi a falar, a ler e a escrever em francês e português e foi lá, também, por influência dos meus pais e da escola, que aprendi a gostar de livros e livrarias. Depois do meu regresso a Portugal, em 1980, perdi a conta às vezes que voltei a Paris. Até que me rendi à vastidão do mundo e decidi que era hora de começar a diversificar os meus destinos de viagem. Só isso explica que tenha estado treze anos sem lá pôr os pés.

A minha última visita à cidade foi na Primavera de 2005 e sei que nessa altura ainda não tinha ouvido falar da Shakespeare and Company, de portas abertas havia já 54 anos. Se soubesse da sua existência, não me teria escapado. Lembro-me de ter entrado numa Fnac, de ter comprado um livro na Virgin dos Campos Elíseos (entretanto encerrada), de ter visitado livrarias no Marais e até no Quartier Latin. Mas a livraria Shakespeare and Company, coladinha que está à Notre Dame, no coração de Paris, e com uma fachada bem exposta na Rive Gouche, passou-me completamente ao lado.

Não sei exatamente quando ouvi falar dela pela primeira vez, mas sei que foi através de um daqueles tops das livrarias mais bonitas (não, lamento, não foi no filme “Antes do Anoitecer”). Nesse tempo o Acordo Fotográfico ainda não existia. Porém, assim que me meti nesta aventura, decidi que um dia fotografaria lá alguém a ler. Demorou um bocadinho, mas o objetivo está concretizado!

A atual Shakespeare and Company, livraria exclusivamente dedicada à literatura em língua inglesa, foi fundada pelo norte-americano George Whitman, um homem com um percurso invulgar. Nascido em 1913 na cidade de Salem, em Massachusetts, licenciou-se em Jornalismo pela Universidade de Boston. Porém, em vez de se lançar como repórter, decidiu, aos 21 anos e muito antes de Kerouac, vagabundear entre os Estados Unidos, o México e a América Central. A maior lição dessa fase da sua vida foi constatar o quanto os mais pobres eram invariavelmente as pessoas mais amistosas e generosas. Em 1941, George alista-se no exército e inscreve-se em Harvard para frequentar um curso de Estudos Latino-americanos até 1942, ano em que é mobilizado para a Gronelândia. Só depois da Segunda Guerra Mundial, em 1946, se muda para Paris e se inscreve na Sorbonne para continuar a estudar, desta feita Psicologia e Cultura Francesa. No quarto onde residia e cuja porta mantinha sempre aberta, havia centenas de livros que emprestava a quem os quisesse ler. Era a semente da livraria que viria a abrir em 1951.

Fonte: Independent.co.uk

Originalmente chamada Le Mistral — dizem que em homenagem à poetisa chilena Gabriela Mistral — George viria a rebatizar a sua livraria em 1964, ano em que se assinalaram os quatrocentos anos do nascimento de William Shakespeare. Aproveitou, desta forma, para homenagear Sylvia Beach, fundadora, em 1919, da primeira Shakespeare and Company em Paris. Esta livraria viria a fechar em 1941, com a ocupação da cidade pelas tropas nazis e a prisão da proprietária, para nunca mais voltar a abrir. Sylvia Beach, também ela uma americana expatriada em França, foi uma figura cultural proeminente em Paris entre as duas guerras mundiais. A sua livraria foi frequentada por autores de renome, tal como André Gides, Paul Valéry, Ernest Hemingway ou F. Scott Fitzgerald, e foi ela que publicou pela primeira vez o romance “Ulisses”, do seu amigo James Joyce, também ele cliente da Shakespeare and Company. Em 1981, quando nasceu a sua única filha, George decidiu que esta herdaria o nome daquela mulher excepcional: batizou-a Sylvia Beach Whitman.

À semelhança do que aconteceu com a Shakespeare and Company original, a livraria de George Whitman tornou-se um polo de atração para os escritores expatriados em Paris. Eram frequentadores Henry Miller e Julio Cortázar, por exemplo, e a eles juntaram-se milhares de outros escritores, artistas e intelectuais convidados a alojar-se na livraria e a dormir por entre os milhares de livros em troca de três coisas, apenas: ajudar na loja um par de horas por dia, ler um livro e escrever uma pequena autobiografia. George chamou-lhes Tumbleweeds — numa alusão àquelas bolas de erva seca que vemos a rolar pelo deserto nos western americanos — isto é, uma espécie de vagabundos literários, e estima-se que cerca de trinta mil já tenham ficado alojados na livraria.

Em 2006, a filha do fundador assumiu as rédeas da Shakespeare and Company. George Whitman, viria a falecer aos 98 anos, em Dezembro de 2011. Para além de ter mantido os habituais eventos literários semanais, que são gratuitos, a nova gerência passou a dinamizar um festival literário, lançou um prémio literário e uma chancela editorial própria. Porém, tal como refere Sylvia, numa entrevista gravada em 2004, “uma das coisas mais incríveis acerca desta área e acerca da loja é que durante cinquenta anos nada mudou. Todos os dias chega alguém que diz ter-nos visitado há trinta ou quarenta anos e que confirma que a livraria não mudou. O que é incrível, quando constatamos quão rápido o mundo muda, com a globalização e Starbucks a surgir em cada esquina… Tudo está a mudar tão rapidamente, mas este é um pequeno canto do mundo que não mudou. E acho que isso é sagrado.”

 

Sem me aperceber do que fazia, entrei no antiquário pensando que estava a entrar no espaço principal da livraria. Mal me vi naquela pequena divisão, sem escadas nem acessos a outras salas, percebi que não estava onde queria, mas os livros expostos e os preços nas etiquetas conquistaram a minha atenção. Diverti-me a identificar edições valiosas de livros que já li, pedi autorização para tirar algumas fotografias e embasbaquei-me perante o valor de uma primeira edição de “On The Road”. Mal sabia eu que, sem ter entrado na livraria propriamente dita, aquele exemplar de preço exorbitante já estava a marcar o espírito das horas que se seguiriam.

Voltei à rua e dirigi-me à porta seguinte. No vidro está colado um simples papel amarelo que anuncia, sem pretensões, “Entance Entrée”. Todavia, a madeira pintada de vermelho é um sinal de alerta, uma forma velada de avisar os mais incautos que aquela não é uma entrada qualquer, mas sim um portal de acesso a um mundo que pertence a outro tempo. Quem gosta de livros e de livrarias entende de imediato porque razão tantos milhares de “vagabundos literários” quiseram ali dormir (e vem-me à memória a imagem da cama no meio da biblioteca de José Pacheco Pereira, na Marmeleira). Ao entrar-se na Shakespeare and Company somos envolvidos pelos milhares de livros que ocupam cada milímetro das estantes de madeira, espraiadas por todas as paredes, do chão às traves do teto. Sentimos um caloroso abraço, como se tivéssemos chegado a casa, e apetece-nos ficar naquele labirinto de sucessivos andares e salas pequenas, no aconchego dos recantos com sofás de veludo e cadeirões velhos a pedir mantas e leituras demoradas, embaladas pelo cheiro acre a livros amarelecidos. A madeira — do chão, do teto, das escadas, das estantes e dos outros móveis —, os livros e as plantas absorvem os sons, já de si parcos; em lugar sagrado sussurramos e fazemos os nossos passos mais leves. A decoração, excêntrica, é inimitável porque resulta de quase setenta anos de história. Nenhuma arquiteta de interiores, nenhum decorador conseguiria hoje conferir carácter semelhante a um espaço pensado de raiz, ainda que tivessem acesso aos mesmos candelabros, os mesmos espelhos, às mesmas máquinas de escrever, às mesmas fotografias, aos mesmos cartazes, às mesmas citações e excertos de poemas escritos nos degraus e nas paredes, às mesmas mesas, ao mesmo piano. A pátina formada por sete décadas de vida não se replica com todo o dinheiro do mundo ou um software de design. Ryan — inglês, músico, leitor e de passagem por Paris — concorda comigo:

Este espaço, esta livraria é daqueles lugares onde me sinto em casa. As livrarias padronizadas, em Inglaterra, tentam ser muito modernas e até o cheiro é pensado, as fragrâncias são feitas à medida, cheira tudo ao mesmo. Enquanto que aqui nem se pensa nisso, há só livros e o seu cheiro natural.

Ryan andava a fazer um périplo por cidades da Europa Ocidental que sempre quisera conhecer, mas que ainda não tinha tido oportunidade de visitar. Começou por ir a Barcelona, onde ficou alojado num quarteirão junto à Sagrada Família, fez um tour gratuito a pé pelo património arquitetónico de Gaudí e começou a descobrir, também, a obra de Dalí. Na manhã em que nos conhecemos, em Paris, continuava a explorar o percurso do artista catalão.

Embora eu seja músico, não me considero um artista, porque não pinto, nem faço filmes como fazia o Dalí, por exemplo. Mas interesso-me por arte e recentemente passei a interessar-me pela arte surrealista em particular. Peguei neste livro quando estava a dar uma vista de olhos pela livraria. É sobre o Dalí. Já li umas quantas páginas e aprendi algumas coisas sobre ele. Não sabia que era tão maníaco!”, diz, rindo-se.

Sabemos que estamos perante uma pessoa que gosta mesmo de ler quando a encontramos numa livraria agarrada a um livro, com todo o tempo do mundo, e a seus pés está um saco onde guarda outros livros, aqueles que leva consigo para todo o lado enquanto viaja pela Europa.

Sim, leio muito. Interesso-me por muitas coisas e passo por várias fases. Tenho estado a viajar e trago livros comigo. Posso mostrar-te este, que até está em más condições. Chama-se ‘The Portable Beat Reader’ e é sobre os autores da Geração Beat — Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William S. Burrouhgs, entre outros. É um livro muito, muito bom! Quem quiser começar a informar-se sobre a Geração Beat eu recomendaria, definitivamente, que começasse por este livro. Tem um capítulo sobre cada autor, com uma pequena biografia, excertos dos trabalhos mais significativos de cada um e ainda contextualiza as suas obras, descreve os estilos de vida e caracteriza as mentalidades. William S. Burrouhgs era um tremendo junkie! Eram todos tão viciados em tantas drogas diferentes! E eram tão misóginos, algo que eu também desconhecia. Achei que sendo liberais e homens mais de esquerda, teriam abraçado os direitos das mulheres, mas não o fizeram. Para mim é uma leitura importante, porque sou músico e esta geração teve uma influência enorme na escrita para canções. Bob Dylan é um dos seus descendentes.

 

Perante alguém que lê tanto, não resisti à maldade de lhe pedir que me apontasse o livro da sua vida ou um livro que o tivesse mudado de alguma forma. Achou piada à pergunta, riu-se de novo:

Tenho de ser honesto: não sou o tipo de pessoa que diz frases dessas, eu nunca digo que a minha vida foi mudada por isto ou por aquilo. E também nunca me tinham perguntado sobre o livro da minha vida. Para mim a leitura é como as cerejas, um livro traz outro. Se começo a ler sobre um tema do zero, sobre o qual não sei absolutamente nada, esse livro leva-me a outros livros. Foi assim que descobri a Geração Beat. Estava a ler sobre música, interessado nos movimentos de contracultura e no impacto que tiveram na sociedade, na mudança da perceção sobre a religião ou a sexualidade. Num desses livros a Geração Beat foi mencionada, porque estes escritores desafiaram abertamente os tabus. E a seguir vou começar a ler poesia francesa — Charles Beaudelaire e Stéphane Mallarmé — porque muitos dos autores da Geração Beat e outras pessoas associadas ao movimento artístico nos anos 20 do século passado, pessoas associadas ao Dadaísmo, foram influenciadas por estes poetas franceses, particularmente Mallarmé. Como estou a aprender francês e estou interessado em aumentar o meu conhecimento da língua, será bom ler a poesia destes autores no original. É um desafio. Se entender uma quarta parte do que ler, já ficarei feliz!

Incapaz de apontar um livro em particular, Ryan soube, contudo, apontar o tema da sua preferência: “História é provavelmente aquilo que mais gosto de ler. Pode parecer estranho, mas toda a gente gosta de História só que ainda não o percebeu. As pessoas associam o tema a História Política, pela qual não se interessam porque não querem discutir política ou ideologia. Mas por exemplo, se te estás a especializar sobre algum tipo de arte, tens necessariamente de estudar os teus antecessores nessa área para aprofundar o teu conhecimento sobre o tema.

Comecei no antiquário a imaginar as viagens que faria com os 3200 Euros que pedem pelo exemplar de “On The Road”. Continuei na livraria a conversar sobre a Geração Beat, liderada por Kerouac. Nesse mesmo dia, ao fim da tarde e influenciada pelo entusiasmo de Ryan, comprei a edição francesa de “Satori in Paris”, na livraria Flammarion do Centro Georges Pompidou. Achei que este texto pequeno funcionaria como uma introdução ao estilo Beat. Gostava de voz dizer que gostei tanto quanto o Ryan, mas estaria a mentir-vos.

4 thoughts on “Ryan, na Shakespeare and Company

    • Muito obrigada, Inês! É tão bom obter feedback do que vou escrevendo. Sim, a história da livraria é muito bonita. Tanto a Sylvia Beach como o George Whitman escreveram livros sobre as suas respetivas Shakespeare and Company. Fica a dica. 😉

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